Wanderley Guilherme dos Santos
Destaco
os seguintes trechos:
Imagine o
que não diriam os editorialistas diante da seguinte proposição: Fernando
Henrique Cardoso locupletou-se durante a presidência precisamente porque não
existem provas de que o fez. É o que se pretende fazer em relação a Dirceu: uma
interpretação ad hominem, isto é, só vale para casos singulares. Fazer da
ausência de provas uma “prova” de que houve crime é a evidência de que se trata
de julgamento de exceção, vingativo.
(…) o
objetivo partidário de permanecer no poder foi satanizado pelo procurador, pelo
relator, pelo preconceito que sai pelos poros de vários dos juízes e pelo
prefácio de oratória proferido por Celso de Mello antes de votar o primeiro
pacote de julgamentos. Em discurso abstrato, sem nomes, mas cheio de adjetivos
degradantes sobre autoridades públicas que cometem ilícitos – o que, de fato,
me lembrou o IPM a que respondi, e era o clima da época, em que coronéis e
tenentes, impunes, esbravejavam contra várias coisas das quais eu não podia ser
acusado, pois não havia provas, chegando ao cômico (mas não ri na hora) de me
acusarem, além de subersivo, de ser suspeito; acredite, fui acusado de ser
suspeito e isso era crime! – o ministro decano estava na verdade manifestando
desprezo a priori pela atividade política e pelo PT como partido político. (…)
O
Tribunal não é de exceção, mas o julgamento sim
Por
Wanderley Guilherme dos Santos
Íntegra exclusiva publicada no Cafezinho
Íntegra exclusiva publicada no Cafezinho
Não sei
se José Dirceu é inocente ou se, como outros, cometeu algum crime à sombra do
ilícito caixa 2. Os autos devem esclarecer isso. Há algo que não depende dos
autos, todavia: será um julgamento de exceção se condenado por não haver provas
contra ele.
Alguns
magistrados do Supremo estão prontos a contorcionismos chineses para escapar à
evidência de que a legislação eleitoral é causa eficiente do caixa 2 e que este
proporciona a oportunidade para diversos crimes que nada têm a ver com tal
ilícito.
Comentários
antecipando votos condenatórios com base em provas nos autos preparam o caminho
para condenações sem provas. A premissa de que chefes de quadrilha não deixam
rastros – interpretação peculiar da tese do domínio do fato – pode ser
defensável, mas requer comprovação sem sombra de dúvida e, até, agora, nenhuma
condenação se apoiou em tal tese ou na versão mais amena de que quanto mais
elevado nas hierarquias de poder, maior a possibilidade de que criminosos
eliminem os indícios. As condenações por corrupção passiva de João Paulo Cunha
e de Henrique Pizzolato são exemplos de que os discursos são para outros.
João
Paulo Cunha foi condenado com fundamento na prova de que os recibos que
explicariam os 50 mil recebidos por sua mulher foram forjados. Enquanto as falas
do procurador e do ministro revisor só apontavam indícios a que atribuíam
hiperbólica significação, a ministra Rosa Weber revelou que os recibos possuíam
numeração seriada, embora supostamente preenchidos em datas afastadas no tempo.
Com isso, a ida da mulher de João Paulo Cunha ao banco para retirar o dinheiro
em espécie deixou de ser um comportamento esdrúxulo, sem dúvida, mas não
criminoso, e muito menos da conta de ministros do Supremo, para se tornar um
indício poderoso da ilegalidade do recebimento. Até porque os comentários dos
juízes eram contraditórios: para Carmem Lucia fazendo sua mulher descontar o
cheque à luz do dia era manifestação solar de arrogância de poder de João
Paulo, indicativo seguro de que se sentia impune; para Rosa Weber, disfarce,
dissimulação, sombra; para César Peluso, garantia de que chegaria em casa e não
seria apropriado por outrem (esse comentário é interessante em outro contexto).
Comentários diversos e contraditórios, mas o fundamento do voto foi o mesmo: a
seriação dos recibos falsos. Ora, o presidente da Câmara é terceiro na linha de
sucessão do poder executivo e os próprios magistrados exaltaram sua posição
para melhor revelar como o crime merecia ainda mais forte repulsa. Não
obstante, apesar desta posição hierárquica elevada, joão paulo deixou rastros
toscos, elementares. Não foi porque, dada sua posição elevada, João Paulo não
deixou pistas e foi condenado assim mesmo. Rosa Weber e todos os que o
condenaram o fizeram com base nas provas toscas que deixou. A tese abstrata de
Rosa Weber e do procurador é contrária aos fatos aqui.
O mesmo
em relação a Henrique Pizzolato. Ele foi condenado porque não apresentou a
pessoa que, segundo sua explicação, seria o destinatário final do pacote cujo
conteúdo alegava desconhecer. Alegação tosca e rude que, não sendo provada,
prova o seu oposto, isto é, que ficou com o dinheiro indevido. Membro do corpo
mais elevado da administração do Banco do Brasil, deixou, não obstante, rastros
que permitiram aos juízes do Supremo o condenarem. Ele deixou rastros e foi
condenado por eles, não porque tenha faltado provas. Outro exemplo em que o
discurso abstrato sobre o domínio do fato nada tem com o voto real, sendo
apenas preparatório para o momento em que não houver mesmo prova alguma e os juízes
condenarem assim mesmo, configurando um julgamento de exceção.
João
Paulo Cunha e Henrique Pizzolato não foram condenados em virtude de pertencerem
a algum esquema diabólico efetivamente comprovado, como querem o procurador e o
ministro relator, mas justamente porque não conseguiram comprovar que os
ilícitos que cometeram resultaram da participação no ilícito caixa 2. Eram
corrupção passiva mesmo. Assim como o ilícito de Marcos Valério, que no
contrato com a Visanet cometeu apropriação indébita, via corrupção ativa, e
Pizzolato corrupção passiva, via adiantamento de pagamentos. Do mesmo modo,
Marcos Valério não foi condenado por se mostrar um elo de mirabolantes enredos,
mas por se apropriar indevidamente dos bônus de contrato de publicidade do BB,
que não tem conexão com caixa 2, embora propiciado por este. ESSES FORAM OS
FUNDAMENTOS DE ROTINA PENAL NO PRIMEIRO BLOCO DA AÇÃO PENAL 470, DESCONECTADOS
DAS ESPECULAÇÕES SOBRE AS LIGAÇÕES ENTRE NIVEL DE AUTORIDADE PÚBLICA E AUSÊNCIA
PROVAS. AO CONTRÁRIO, TODAS AS AUTORIDADES PÚBLICAS CONDENADAS NO PRIMEIRO
PACOTE DEIXARAM PROVAS SUFICIENTES E, ALGUMAS, BASTANTE TOSCAS, QUE NENHUM
MELIANTE MEDIANAMENTE EXPERIMENTADO DEIXARIA DE EVITAR.
A
INTERPRETAÇÃO do domínio do fato é a espinha dorsal para a condenação sem provas.
Para tanto, o procurador insinuou e o relator apresenta repetidamente, em
paralelo aos autos, um enredo perverso que ligaria todos os ilícitos, como se
todos fossem uma mesma coisa, cujo Autor sem assinatura seria José Dirceu. A
idéia é tornar aceitável a interpetação segundo a qual “quanto mais elevada for
a posição do criminoso nas hierarquias sociais, mais fácil a ocultação de
provas”, hipótese heurística defensável (embora não existam pesquisas que
comprovem indubitavelmente que se trata de uma verdade, mesmo que apenas
probabilística). Equivale a “não havendo provas, é forte indício de que há o
mando de uma autoridade”. Além de ser contrária aos fatos na Ação Penal 470, a
tese hipotética aceitável não se transforma na segunda senão por subterfúgio.
Da proposição verdadeira de que todos os ímpares são números não se segue que
todos os números são ímpares. Essa tentativa, se bem sucedida, é que fará deste
um julgamento de exceção, ou seja, nunca mais se repetirá. Imagine o que não
diriam os editorialistas diante da seguinte proposição: Fernando Henrique
Cardoso locupletou-se durante a presidência precisamente porque não existem
provas de que o fez. É o que se pretende fazer em relação a Dirceu: uma
interpretação ad hominem, isto é, só vale para casos singulares. Fazer da
ausência de provas uma “prova” de que houve crime é a evidência de que se trata
de julgamento de exceção, vingativo.
A grande
imprensa clama unanimemente por isso, mas não penso que os juízes estejam
necessariamente se submetendo a ela. Acho, sim, que, neste caso, alguns juízes
raciocinam como a grande imprensa. Por isso não se sentem pressionados, exceto
o Lewandowski, claro. Eles sentem com absoluta convicção que o projeto do PT,
Lula e Dirceu são um mal. Representou a quebra do monopólio do voto de classe
média como fiel da balança eleitoral, a seduzir pés rapados que se elegem e os
elegem. E se não há provas desse mal, é porque são diabólicos e não deixam
rastro. Vai ser preciso condenar sem provas porque, no fundo, acham que estão
certos.
Os
ilícitos para os quais existem provas não podem ser somente conseqüência do
caixa 2, do qual a justiça eleitoral é causa eficiente, ou da banal corrupção,
por hábito ou oportunidade. Precisam estar dentro de um enredo maléfico, que
parece impossível demonstrar. Isso, é claro, se o julgamento for até o fim do
mesmo jeito. Se provarem que Dirceu afanou algum, é uma coisa, daí a “provar”
um esquema perverso em que todos tinham consciência e cumplicidade no objetivo
final, obscuramente definido como “permanecer no poder”, vai grande distância.
O
objetivo partidário de permanecer no poder foi satanizado pelo procurador, pelo
relator, pelo preconceito que sai pelos poros de vários dos juízes e pelo
prefácio de oratória proferido por Celso de Mello antes de votar o primeiro
pacote de julgamentos. Em discurso abstrato, sem nomes, mas cheio de adjetivos
degradantes sobre autoridades públicas que cometem ilícitos – o que, de fato,
me lembrou o IPM a que respondi, e era o clima da época, em que coronéis e tenentes,
impunes, esbravejavam contra várias coisas das quais eu não podia ser acusado,
pois não havia provas, chegando ao cômico (mas não ri na hora) de me acusarem,
além de subersivo, de ser suspeito; acredite, fui acusado de ser suspeito e
isso era crime! – o ministro decano estava na verdade manifestando desprezo a
priori pela atividade política e pelo PT como partido político.
É fácil
demonstrar que sem partidos políticos e parlamentos livres, nenhuma outra
instituição é seguramente livre. Quando os partidos são fechados, a imprensa é
censurada e o judiciário se acoelha. Tal acontece em todas as ditaduras e assim
aconteceu no Brasil, durante o Estado Novo e durante a ditadura militar. Os
advogados de presos e torturados políticos – Nilo Batista, Modesto da Silveira
e a Rosa Maria Cardoso da Cunha, e que está na comissão da verdade, o falecido
Heleno Fragoso, entre vários outros – sabem muito bem o que foi o rebaixamento
silencioso do judiciário nesse último período. Quem garante a liberdade das
demais instituições democráticas é um sistema partidário livre, não o
contrário.
Fonte:http://www.ocafezinho.com/
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