Em cadeias de lanchonetes é comum ver anúncios de refeições com
tamanhos avantajados. Hambúrgueres duplos acompanhados de porções
grandes de batatas fritas e um balde de refrigerante para completar. Mas
essa montanha de calorias, muitas vezes bem superior à recomendada para
uma refeição, nem sempre aplaca a fome. É que quanto mais rica em
gordura é a comida, mais se quer comer. Para quem esperaria o contrário,
que esses alimentos mais pesados e difíceis de digerir deveriam saciar
mais facilmente, agora há explicação. “A dieta hiperlipídica torna mais
ativos os neurônios que induzem a fome”, explica o bioquímico gaúcho
Marcelo Dietrich, pesquisador na Faculdade de Medicina da Universidade
Yale, nos Estados Unidos.
Ele chegou a essa conclusão recentemente estudando a ação de dois
grupos de neurônios – um que induz a fome e outro a saciedade –, ambos
localizados em uma região na base do cérebro chamada hipotálamo. Em
experimentos com camundongos, Dietrich verificou que o consumo de muita
gordura desregula esse mecanismo essencial à sobrevivência. Alimentando
os roedores com diferentes tipos de dieta, ele constatou que o excesso
de gordura aumenta a atividade dos neurônios da fome, conhecidos pela
sigla AgRP, ao mesmo tempo que reduz o funcionamento dos neurônios da
saciedade, os Pomc. Esse desequilíbrio surge em consequência de mudanças
nas mitocôndrias, as organelas que produzem energia nos neurônios,
demonstrou o pesquisador em estudo publicado em setembro na Cell.
Mais do que revelar de onde vem a voracidade ligada ao consumo de
comidas gordurosas, esses resultados indicam que deve ser difícil
desenvolver medicamentos contra obesidade baseados na modulação desses
dois tipos de neurônio. Isso porque uma mesma proteína induz alterações
distintas nas mitocôndrias dessas células.
Fome implacável
O foco dos estudos de Dietrich, que também é associado ao Departamento de Bioquímica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde trabalha com o bioquímico Diogo Souza, são os neurônios AgRP, que quando ativados despertam o apetite. “É um mecanismo essencial à vida”, diz o pesquisador. “Mesmo durante o jejum, quando a energia é escassa e o metabolismo de muitas células diminui, uma parte desses neurônios permanece consumindo energia para garantir o impulso de buscar alimento”, explica. Num experimento com camundongos realizado no laboratório de Tamas Horvath, diretor do Programa de Sinalização Celular Integrativa e Neurobiologia do Metabolismo, de Yale, Dietrich e seus colegas investigaram o que acontecia quando os roedores ganhavam ração reforçada em gordura (lipídios). Eles observaram que, depois da refeição, a proporção desses neurônios ainda ativa no cérebro dos camundongos que consumiram gordura era maior do que no dos camundongos em dieta normal. Esse resultado foi o oposto do esperado, uma vez que o primeiro grupo de animais havia consumido mais energia.
Os pesquisadores mostraram que essa ativação anormal ocorre porque as
mitocôndrias, produtoras da energia das células, o trifosfato de
adenosina (ATP), se fundem. Maiores e menos abundantes, as mitocôndrias
geram mais ATP e turbinam a atividade dos neurônios AgRP, aumentando a
fome e o acúmulo de gordura. O resultado são camundongos bem acima do
peso habitual.
“A fusão das mitocôndrias causada pela dieta rica em gordura é uma
novidade”, relata Dietrich. Na situação oposta, quando o organismo está
em jejum prolongado, as mitocôndrias se dividem. Menores e mais
abundantes, elas são menos eficientes na produção de ATP. Ele comprovou
esse efeito das gorduras sobre as mitocôndrias ao tratar com ração
hiperlipídica camundongos geneticamente modificados para não produzir
duas proteínas, a mitofusina 1 e a mitofusina 2, responsáveis pela união
dessas organelas. Ao bloquear a fusão das mitocôndrias – elas
permanecem com o tamanho normal –, uma proporção maior de neurônios da
fome permaneceu em repouso e os camundongos não engordaram.
Insaciáveis
Os resultados de Dietrich ganham mais importância quando vistos em conjunto com os de outro artigo publicado na mesma edição da Cell. Nesse segundo trabalho, que contou com a participação de Dietrich e Horvath, os pesquisadores Marc Schneeberger e Marc Claret, do Instituto de Investigações Biomédicas August Pi i Sunyer, em Barcelona, Espanha, indentificaram em camundongos outra relação entre a dieta e a função dos neurônios responsáveis pela saciedade, os Pomc. A ausência da mitofusina 2, cuja produção cai quando os roedores são alimentados com ração rica em lipídios, praticamente sabota essas células cerebrais. “Eles se tornam menos ativos”, conta Dietrich. “Como os neurônios Pomc promovem a saciedade, sua inativação rompe o equilíbrio e só os neurônios da fome ficam com atividade alta.” Com o apetite desenfreado, os camundongos se tornam extremamente obesos.
O
problema por trás do mau funcionamento dos Pomc novamente está nas
mitocôndrias, que, desta vez, se tornam maiores e disformes. Sem a
mitofusina 2, as mitocôndrias, além de deformadas, se descolam do
retículo endoplasmático, organela que participa da síntese de proteínas.
“Acreditamos que as mitocôndrias usem o cálcio e os lipídios
armazenados no retículo para a geração de energia”, explica Dietrich.
Quando esse fluxo é interrompido, ambas ficam prejudicadas e funcionam
mal. Nesse contexto, as mitocôndrias passam a liberar espécies reativas
de oxigênio, moléculas que causam desequilíbrios bioquímicos no
organismo. Nessa situação as mitocôndrias deixam de produzir o ATP
necessário à função dos neurônios Pomc, que, inativos, param de
responder à leptina, o hormônio responsável por sinalizar que o
organismo está alimentado. A saciedade não vem e os camundongos glutões
ficam eficientes em acumular gordura.
Pílulas emagrecedoras
Para Dietrich, a importância desses dois estudos é mostrar que uma mesma molécula pode gerar efeitos muito distintos conforme a célula em que atuam. Mesmo em grupos de células vizinhas na mesma região do cérebro, como é o caso das AgRP e das Pomc, a mitofusina 2 atua de maneira completamente diferente: nas AgRP ela contribui para a fusão das mitocôndrias, enquanto nas Pomc auxilia a adesão das mitocôndrias ao retículo endoplasmático.
Uma consequência mais geral dessa observação, segundo o pesquisador, é
que não será simples obter um composto único que atue sobre as vias de
sinalização da fome e da saciedade para tratar a obesidade, hoje uma
epidemia que atinge 17% dos brasileiros com mais de 20 anos, segundo
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Num país em
que há abundância de alimentos gordurosos e no qual as refeições pouco
saudáveis em lanchonetes são uma solução comum para a correria
cotidiana, os resultados de Dietrich e colegas adquirem tom de urgência.
“O reflexo da fome é um dos mais básicos para a sobrevivência, não é
possível suprimi-lo sem pôr a própria vida em risco”, diz o pesquisador.
Por isso, em sua visão, é tão difícil desenvolver medicamentos contra
a obesidade que não tenham efeitos colaterais graves, como ele e
Horvath indicaram num artigo de revisão publicado em 2012 na Nature Reviews Drug Discovery.
Mas essa dificuldade não impede que a busca continue. Ao contrário, a
estimula. Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o grupo do
biólogo molecular João Bosco Pesquero acaba de firmar um acordo de
cooperação internacional com colegas do Max Delbrück Center for
Molecular Medicine, na Alemanha (ver Pesquisa FAPESP nº 211). O objetivo é acelerar a busca por um medicamento eficaz e seguro contra a obesidade que atue nos neurônios da saciedade.
Em artigo publicado em julho deste ano na Biological Chemistry,
o grupo de Pesquero testou camundongos que não produzem os receptores
B1 para cinina, envolvidos na ação da leptina. Nesses animais, os
pesquisadores verificaram um aumento na atividade dos neurônios da
saciedade. “Esses roedores têm um metabolismo diferente, são protegidos
da obesidade mesmo consumindo uma dieta gordurosa”, conta Vicencia
Sales, doutoranda no grupo de Pesquero e coautora do artigo.
Os grupos da Unifesp e da Alemanha, em parceria com colaboradores de
Toulouse, na França, apostam no avanço de um composto em fase de testes
experimentais que bloqueia os receptores B1 de cinina. Assim, eles
esperam aumentar a sensibilidade dos animais à leptina e saciar a fome.
Mas, para que se torne um medicamento viável, entre outras alterações,
ainda seria necessário torná-lo mais estável e capaz de atravessar a
barreira hematoencefálica para chegar ao cérebro. Isso só valerá a pena,
no entanto, caso ele se comprove seguro e eficaz. A droga não parece
ser prejudicial para os camundongos, nos quais tem sido testada antes de
poder ser aplicada a seres humanos. “Claro que sempre há a preocupação
sobre como outros neurônios podem responder a esse composto”, conta
Vicencia, que pretende dedicar o resto de seu doutorado a entender o que
o fármaco faz no organismo como um todo.
Os resultados de Dietrich evidenciam, para ela, a importância de
olhar com mais cautela o que acontece com as mitocôndrias em seu modelo
de pesquisa. “É um trabalho muito difícil”, conta. Afinal, é preciso
isolar neurônios de um cérebro que já é pequeno como o do camundongo,
com cerca de 2 centímetros, para inferir a atividade elétrica e a
produção de ATP. “O hipotálamo desses roedores tem mais ou menos 0,3
milímetro e é um pouco maior que um grãozinho de areia”, avalia. Isolar
essas células exige uma técnica que o grupo de Yale domina e que fez a
diferença no trabalho de Dietrich. A trama de neurônios que envolve
mecanismos complexos e fundamentais como a necessidade de se alimentar
certamente só pode ser desvendada com a soma de conhecimentos, ideias e
especialidades de múltiplos grupos. De preferência, trabalhando em
conjunto.
Artigos científicosDIETRICH, M. O. et al. Mitochondrial dynamics controlled by mitofusins regulate AgRP neuronal activity and diet-induced obesity. Cell. v. 155, n. 1, p. 188-99. 26 set. 2013.
SCHNEEBERGER, M. et al. Mitofusin 2 in Pomc neurons connects ER stress with leptin resistance and energy imbalance. Cell. v. 155, n. 1, p. 172-87. 26 set. 2013.
TORRES, H. A. M. et al. Kinin B1 receptor gene ablation affects hypothalamic CART production. Biological Chemistry. v. 394, n. 7, p. 901-8. jul. 2013.
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