Nunca percebi muito bem como separar a carne do espírito, não me
ensinaram, não sei como se faz, nunca houve ninguém com um receituário
concreto que me esboçasse um caminho. Em pouco tempo perdi o interesse,
habituei-me à complementaridade, abafei a religião que propaga a
infinitude de um e a morte do outro, esqueci a vida eterna e a lucidez
do intelecto, construí o que sei. Mas o que eu sei, não é muito. Sei que
o meu espírito obedece ao meu corpo vezes esquecidas, e que mesmo num
resquício de ideia estruturada, é na carne que eu vivo todos os dias e
todas as noites, todas as horas e todos os momentos, todos os prazeres e
todas as dores.
Talvez por isso tenha desistido de lutar contra ela, deixei-me disso.
Oiço-a da ponta dos meus pés à ponta da minha cabeça, perco-me em cada
poro visível e invisível, destaco os contornos e os trajectos,
concretizo o que me possibilita viver, conheço-me no infinito. Desde
essa altura nem me atrevo a esquecê-la. Não me permito ao desconcerto
efectivo, dou-lhe os ouvidos e a boca, as mãos e o cheiro, olho-a de
frente e de perto, sem medos ridículos. Até porque ninguém me conhece
melhor do que ela: sabe exactamente onde começo e onde acabo, o que
quero e o que não gosto, o que espero e onde me dirijo, o que me mata e o
que me acorda.
Irrita-me particularmente que a chamem de fraca, vejam, dizem-no dela
porque se impõe. E por favor, analisem bem quem tem a razão. Eu, por
exemplo, não sei o sítio exacto onde reside o meu amor. Se entre as
ligações sinápticas e invisíveis que me percorrem o cérebro, ou se na
pele externa que de fora o quer. Jamais o conceptualizaria apenas
morador de rua, isso não seria amor. Mas faltar-me-ia à brava o
concreto, se o reservasse e limitasse à inocência do intelecto.
Há por aí quem me diga que o apuramento da razão não interessa, e sendo
assim tem-na toda. E o certo é que sabe disso, local exacto onde a piada
se esvai e o meu corpo estremece. Ou não fora a carne fraca, pois. E eu
submissa a ela, claro.
(
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