quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Carne fraca


Nunca percebi muito bem como separar a carne do espírito, não me ensinaram, não sei como se faz, nunca houve ninguém com um receituário concreto que me esboçasse um caminho. Em pouco tempo perdi o interesse, habituei-me à complementaridade, abafei a religião que propaga a infinitude de um e a morte do outro, esqueci a vida eterna e a lucidez do intelecto, construí o que sei. Mas o que eu sei, não é muito. Sei que o meu espírito obedece ao meu corpo vezes esquecidas, e que mesmo num resquício de ideia estruturada, é na carne que eu vivo todos os dias e todas as noites, todas as horas e todos os momentos, todos os prazeres e todas as dores. 

Talvez por isso tenha desistido de lutar contra ela, deixei-me disso. Oiço-a da ponta dos meus pés à ponta da minha cabeça, perco-me em cada poro visível e invisível, destaco os contornos e os trajectos, concretizo o que me possibilita viver, conheço-me no infinito. Desde essa altura nem me atrevo a esquecê-la. Não me permito ao desconcerto efectivo, dou-lhe os ouvidos e a boca, as mãos e o cheiro, olho-a de frente e de perto, sem medos ridículos. Até porque ninguém me conhece melhor do que ela: sabe exactamente onde começo e onde acabo, o que quero e o que não gosto, o que espero e onde me dirijo, o que me mata e o que me acorda. 

Irrita-me particularmente que a chamem de fraca, vejam, dizem-no dela porque se impõe. E por favor, analisem bem quem tem a razão. Eu, por exemplo, não sei o sítio exacto onde reside o meu amor. Se entre as ligações sinápticas e invisíveis que me percorrem o cérebro, ou se na pele externa que de fora o quer. Jamais o conceptualizaria apenas morador de rua, isso não seria amor. Mas faltar-me-ia à brava o concreto, se o reservasse e limitasse à inocência do intelecto. 

Há por aí quem me diga que o apuramento da razão não interessa, e sendo assim tem-na toda. E o certo é que sabe disso, local exacto onde a piada se esvai e o meu corpo estremece. Ou não fora a carne fraca, pois. E eu submissa a ela, claro. 


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