segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O fio do bigode


Estes dias me vi pensando no que consiste e o que autoriza a confiança. Uma noção corrente do que se entende por "confiar", que é expressa pela idéia de que confiamos em quem conhecemos, nos sugere que a questão é precedida por outra: quando podemos dizer que conhecemos uma pessoa?

Os problemas aparecem quando consideramos a singularidade deste tipo de coisa que são as pessoas. Não podemos dizer que conhecemos quem seja uma determinada pessoa da mesma maneira que dizemos conhecer o que seja um sapato ou um abacaxi. Um objeto como estes últimos atende a uma série de predicados que podem ser determinados e enumerados, nos dando a identidade do objeto. Uma pessoa não se deixa esgotar em determinações por um motivo surpreendente numa primeira menção: ela é algo em aberto. Cada pessoa tem um aspecto do seu ser por decidir e esta decisão não pode ser recusada em nome de uma essência que alguém reivindique para si.

A idéia de que uma pessoa é uma substância à maneira das coisas está no fundamento da expectativa de uma alma imortal e por isso se compreende porque é tão difícil negociar com ela. Ela se afirma em noções problemáticas e abusivamente metafóricas como quando se fala num "interior" ou "conteúdo" das pessoas. Mesmo que alguém postule a todo tempo ter uma substância ou caráter de que pensa não poder abrir mão, cedo ou tarde ela vai se confrontar com um novo aspecto de si que não corresponde a este caráter. A cada instante se atualiza um horizonte infinito onde a pessoa precisa fazer sua escolha e precisa fazê-lo por si, sem dispor de dogmas, preceitos ou preconceitos que cultive a seu respeito.

Há mesmo quem queira ver a si próprio meramente como um processo bio-físico tal qual as outras formas de vida, postulando um imanentismo à natureza que goza até de alguma economia e elegância (a tese de que tudo, inclusive a consciência, segue leis naturais); no entanto, verá o quão pouco isto é razoável tão logo se sinta empenhado em deliberar o que fazer e se veja convocado a agir de modo bem mais refinado que uma coisa da natureza.

Então, quando respondemos a pergunta "quem é fulano?" parece que não estamos autorizados a nada dizer a não ser que ao fim dos predicados que forem propostos lancemos mão de expressivas reticências (só uma vez morto é que um cara pode ser definido como algo determinado). Quando muito poderíamos dizer que estamos diante de uma pessoa como diante de um livro cuja leitura não terminamos; o que já foi lido não determina o que ainda está por se ler, somente delimita um âmbito de possibilidades que é sempre muito amplo para qualquer previsão.


Concluir-se-ia, portanto, que não se poderia de modo sensato confiar em uma pessoa, inclusive em nossa própria pessoa. Em verdade, se ficarmos tão somente com os resultados expostos até aqui, a própria palavra "confiança" parece destituída de qualquer sentido, pois não tem uso com relação às coisas que não são pessoas. Ora, parece que não é assim que lidamos uns com os outros e o problema ainda merece mais algum exame.

A idéia de que confiamos numa pessoa se a conhecermos de modo satisfatório parece seriamente comprometida. Porém, a própria idéia de que uma pessoa é algo que se redefine a todo momento por uma escolha pode nos dizer muito aqui. Tomemos isto e admitamos que, de fato, as pessoas estabelecem entre si esta relação chamada "confiança". Em que ela consiste?

Minha proposta é que quando confiamos em alguém muito simplesmente nos abrimos, ou noutros termos, nos expomos à escolha do outro; e o fazemos, por nosso lado, também por uma escolha. A partir daí, a escolha do outro passa a ser do nosso total interesse, o que mostra que esta relação pode até envolver apreensão e nunca é de todo tranquilizadora ou indiferente. Não se trata de um mero juízo indiferente sobre o que se pode esperar de alguém, mas um efetivo empenho com o que o outro decidirá ser, tal é a imagem da expressão em que alguém diz "pôr a mão no fogo" por outrem. Um resultado curioso seria que somos levados a propor que a confiança não nos autoriza a um descuido, a não estar atento ao que o outro escolhe, mas ao contrário, nos demanda esta atenção. Tanto os comerciantes que negociam valores como os amantes que empenham seus afetos dizem confiar por que decidiram estar expostos ao que o outro decidirá fazer de si.

Porque alguém se abre com tal risco? Consideremos que embora a escolha de uma pessoa seja sempre dela, de algum modo ela tem em vista as outras pessoas e as escolhas destas últimas. Parece que é próprio de uma pessoa ser entre outras e o que ela decide para si leva isto em conta, para o bem ou para o mal, inclusive. Mesmo o egoísta ou o misantropo decide algo em relação aos outros e está sujeito de algum modo ao que um outro decide.


Que nossas escolhas sejam reciprocamente entrelaçadas parece mesmo um resultado inevitável. Daí porque a relação de que ora tratamos esteja presente no contato mais banal e cotidiano que as pessoas podem manter. Enfim, confiamos uns nos outros porque é próprio da nossa condição de pessoa decidir por confiar em alguém, é uma questão que se nos apresenta a todo tempo e da qual não podemos fugir (alguém pode resolver não confiar mais, porém vai ter que voltar a esta questão cedo ou tarde tão logo se apresentem novas situações).

Surpreendentemente invertemos a definição inicial. Antes dizíamos confiar por conhecer. Agora parece que temos de conhecer (o que cada um decidirá ser) por que confiamos. O que o confiado decide para si nos dá algo a pensar e isto nos convoca a uma nova escolha; e assim prosseguem ou são desfeitas amizades, sociedades, casamentos etc. a metáfora do livro ainda é boa, avançamos na leitura ou o largamos de lado ponderando sobre o que foi lido até o momento e o que esperamos do que ainda há por se ler. o singular aqui é que nunca é algo que fica ali estagnado, feito um abacaxi, mas é sempre matéria de contínuo exame e deliberação.

Tem algo de aflitivo aqui. Passando a régua, parece que estamos todos entregues ao imprevisível e que, como no poema de Drummond, "depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será". De um modo geral é isto mesmo. Alguns elementos constatáveis nos acenam com o provável para se guiar onde nada é exato. Assim os contratantes avaliam a reputação uns dos outros antes de celebrarem negócio e o histórico de uma parceria é levado em conta na decisão de se prosseguir com ela ou não. contudo, quem confia está no fim das contas aberto a todas as incertezas envolvidas na escolha do outro, como já estava aberto às incertezas de sua própria escolha. Se constatamos uma aflição aqui, não teríamos por que não constatá-la antes, no âmbito individual da escolha. É provável que se trate, inclusive, de um mesmo sentimento que todos nós temos que viver.

Por isso comunicamos que algo foi decidido onde até então tudo era incerto. Daí os atos solenes ou os sinais: promessas, acordos, o fio do bigode e as alianças de noivado. Simbolizando nossas escolhas, as compartilhadas ou individuais, as projetamos para além do imediato, nos propomos como transcendentes aos instante e manifestos no mundo mediante nossa obra ou história. Esta é a idéia do compromisso, um programa agendado no passado e ao qual temos que atender no futuro, e que faz com que o cara do passado seja o mesmo do futuro. Há quem não goste de compromissos. É possível mesmo viver sem nunca se comprometer com nada ou ninguém: basta fugir de si próprio a todo tempo.

(Fábio François)
Fonte: http://fitak7.blogspot.com/search/label/Poesia

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