sábado, 19 de setembro de 2009

Domingo memorioso


Estamos no último dia de 2002. Essa sensação de juízo final presente ao fim de cada ano sempre me desperta um sentimento de desamparo. Em Ip não tem festa. Em minha casa, meus pais estão dormindo. Minha filha foi passar as festas do fim do ano com a família do pai, meu irmão está na casa dele. Aproveito para rever o texto de Júlia e rascunhar a introdução.
Nos três dias gastamos, mais ou menos, nove horas em nossas conversas. É cansativo para a idade dela. Datação é uma dificuldade grande. Consigo localizar o tempo pelas marcações dos acontecimentos.
Entre nós há bastante empatia e não foram esses os nossos únicos contatos. Mas é diferente quando a conversa tem objetivos porque há um caminho a seguir. A empatia, de uma certa forma, pode favorecer a dispersão. É preciso ficar atenta para não perder muito o rumo, o que é mais difícil quando se fala sobre contextos compartilhados. Enquanto Júlia vai tecendo suas lembranças, principalmente na última fase de nossa conversa, eu revejo um Ipaumirim com seus rostos e costumes.
Conversar com Júlia foi uma experiência fascinante. Ela não sabe ler mas tem uma percepção aguçada pela experiência. Ainda guarda medos e receios do seus tempos de prostituição. Medo de comprometer e receio de se expor e sofrer retaliações. Sua maior conquista foi a reintegração na comunidade local freqüentando os ambientes que anteriormente jamais sonharia. Tinha o maior orgulho de assistir missas, comungar e participar da irmandade do Coração de Jesus, ser recebida nas casas, sentar nas calçadas, falar com todo mundo.
Eu não quis publicar este material antes da sua morte para evitar que ela fosse assediada com perguntas, comentários e brincadeiras maliciosas.
Júlia é uma pessoa como qualquer outra. Teve amores, desafetos, dificuldades, alegrias, tristezas, medos. Mas tem uma qualidade rara. Júlia se respeita e vem daí minha maior admiração por ela.
ML
Obs: A contextualização política local - do texto a seguir - não seria possível sem a colaboração valiosa de José Henrique Silva e Flávio Lúcio Bezerra de Oliveira, memórias privilegiadas, fontes que muito tem ajudado, em vários momentos, na construção do blog.

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