sábado, 26 de abril de 2008

Domingo também é história

José Américo de Almeida
Pior é morrer de fome em Canaã
de José Américo de Almeida
31/07/1937

Escritor e intelectual paraibano, José Américo de Almeida foi um dos principais chefes civis da Revolução de 30, sendo nomeado ministro da poderosa pasta da Viação e Obras Públicas. Em 1937, é indicado candidato a presidente da República, com o apoio do Nordeste, de Minas e de boa parte do Rio Grande do Sul, concorrendo contra Armando de Sales Oliveira, lançado por São Paulo. O então presidente, Getúlio Vargas, embora vetasse o nome do líder paulista, jamais apoiou efetivamente José Américo, que, aos poucos, foi radicalizando sua campanha, com um discurso cada vez mais populista, o que lhe valeu uma penetração crescente entre os eleitores mais humildes. É nessa época que ele cunha a frase que ficou célebre: “Pior do que morrer de sede no deserto, é morrer de fome em Canaã”. Assustadas, as elites começam a retirar o apoio a José Américo, que, em 31 de julho de 1937, pronuncia na Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro, então capital da República, seu discurso mais famoso. Ainda tenta se equilibrar na corda bamba. “O nosso homem de governo, mesmo com o coração batendo do lado esquerdo, será sempre um homem de centro”, diz no comício. Mas já era tarde. Vargas e a cúpula das Forças Armadas haviam passado à conspiração e, pouco antes da data marcada para as eleições, dão um golpe de Estado, suspendem o pleito e impõem a ditadura do Estado Novo.



Abaixo, trechos do discurso na Esplanada do Castelo.


Nunca na minha vida corri atrás da popularidade, como meio de subir, sabendo que não subiria sem a vontade do povo, porque essa escalada seria um passo em falso. Jamais cortejei as multidões, dizendo-lhes o que não sentia, prometendo-lhes o que não podia, dando-lhes o que não devia dar. E não me passaria pela mente vencer sem a consagração plebiscitária dos movimentos de opinião.
Já conquistei a convenção solene dos partidos. Só me faltava esta, ao ar livre, sem luxo, sem fogos de artifício, sem artifício nenhum. O povo que não vai às festas e vem aqui de roupa de trabalho não quer outro cenário. Fica satisfeito, debaixo do céu, revendo os quadros eternos e sempre novos da terra miraculosa e a cidade inquieta que sobe e desce, nos seus contrastes humanos. Tudo natural, tudo de graça, tudo dado por Deus para os que não podem ter fantasmagorias suntuosas.
Outro dia fugiu-nos o sol que teria sido a única pompa de nossa parada vespertina. E caiu a chuva que sempre foi minha esperança de domador das secas. O que mais desejei, o que mais pedi, o que mais criei foi a água milagrosa para a salvação da terra esquecida do céu. Ela será sempre bem-vinda, ainda que venha contra mim. E, naquela tarde de mau tempo, matou a sede dos jardins e das hortas e a sede mais sensível dos bairros ressequidos que a esperam de torneiras escassas como esguichos de felicidade.
Uma porção de gente ainda foi, debaixo do aguaceiro, ensopada e delirante, ouvir-me a palavra que faltara. E a umidade da noite áspera aqueceu-se, naquele instante, de um calor de almas sinceras, que me entrou de casa adentro.
O sol que falhou não é a luz vulgar de cada dia, que, ainda agora, esplende na magia crepuscular. É o que nos espera, na hora própria, como um símbolo fulgurante. Desgraçados dos que se servem das próprias leis da natureza para picuinhas facciosas. Sempre harmônicas, elas se vingam dessas profanações com uma harmonia mais perfeita, como a promessa de um sol novo.
No meio do povo, sinto-me, agora, à vontade, sem forçar a natureza, sem fingimentos dramáticos.Ninguém dirá que me inclino de cima para baixo, com o gesto constrangido de quem quer subir, descendo, para subir ainda mais. Foi esse o meu nível, ombro a ombro, entre gente pobre, com o homem da rua, na onda humana em que vivemos muitas vidas, esquecendo a nossa, para podermos sentir a humanidade.
Como Ministro de Estado, minha mais elevada função de governo, não deixei esse convívio. Sentei-me nos bancos duros de bondes plebeus; andei a pé, aos encontrões, de mistura com todas as camadas; entrei nos jardins abertos rodeados de guris que não tinham em casa onde brincar; assisti à luta dos trabalhadores e chorei as lágrimas dos mártires, no martírio da seca. Não sou um estranho no seio das massas. Nunca as olhei de cima, cheio de importância. Os amigos chamavam-me a atenção para que eu não me expusesse a essa vulgaridade. E eu respondia que era para não perder o hábito, para não estranhar, quando deixasse as posições.
Queixam-se os adversários de que trato muito de minha pessoa. Não tenho medo de falar de mim, nem que falem de mim. Faço o balanço da vida e é dela que farei o balanço da ação pública. Falo porque posso.
Censuravam-me por causa do que convencionavam chamar o decoro do cargo. Para mim, o decoro do cargo era coisa muito diferente. Eu queria colher os mistérios nos abismos d'alma coletiva. E ficava sabedor de tudo. Descobria um mundo que sofria e amava o sofrimento.
Começa que só se conhece a vida conhecendo todas as vidas. Descobri o Brasil de baixo para cima. Não tenho medo de subir, nem medo de descer. De cima, saberei o que se passa embaixo; de baixo, aprenderei a viver em cima.

Fome de idéias novas

Os antagonistas mais sôfregos cobram-me, a cada passo, as idéias de governo, com fome de idéias novas. De cada comício meu esperam esse nutrido cabedal, como se eu fosse capaz de fazer de um simples discurso uma maciça plataforma. A plataforma ideal não sairia feita dos livros alheios, e sim do espírito que formei. Seria a tessitura de um pensamento político: cada palavra, uma convicção; cada princípio, uma profissão de fé; cada promessa, um ponto de honra. Comporia a essência do estudo que se diluiu na meditação e se impregnou dos tons mais reais da vida. Não exprimiria o detalhe inútil; delinearia um sistema cheio, como diria Baldwin, da faculty of seeing and tracing consequence. Procurando saber o que vai acontecer para saber o que se deve fazer.
Se eu dissesse que praticaria isso ou aquilo, dessa ou daquela forma, não passaria de um leviano. O governo é ação conjunta. As idéias gerais e a especialização; o plano e a execução; a arquitetura e a mão-de-obra.
Formarei a estrutura que, para manter contato com tudo que for humano e objetivo, para se arejar de realidades novas, ficará mais projetada no futuro, do que escrita no papel. Não se dirige um veículo com idéias preconcebidas, quanto mais um povo.
Uma plataforma não pode ser uma enumeração; é um golpe de vista.
Não serão palavreados vãos, fórmulas aleatórias, gosmados nevoentos, sem substância de alma, sem a força da sinceridade que nos corre nas veias. Não acenderá uma vela a Deus e outra ao diabo.
Sei que não basta dispor de boa vontade; difícil é saber o que é bem servir, com o discernimento, a vocação, o tato do interesse geral. As plataformas são vulgares ou precárias. Não há brasileiro que não sinta o de que é que o Brasil precisa. Não compreende, mas sente. Os problemas gerais entram pelos olhos. Por exemplo: valorizar o homem e a terra, dando ao homem vigor, preparo e recursos para tornar a terra mais atraente e produtiva; tirar do Brasil tudo o que ele pode dar para a sua independência econômica - ferro, petróleo, carvão-de-pedra, energia elétrica, trigo, mesmo fazendo sacrifício para mostrar que não dá, por ser menos penosa uma desilusão do que a pecha vergonhosa de não saber utilizar suas próprias riquezas; abrir estradas, um lugar-comum sempre novo, como abrir escolas; fragmentar a propriedade, proteger o trabalho, especializar a mão-de-obra, incentivar a policultura, para elevar o nível de vida do homem brasileiro; desenvolver a técnica da propaganda, dentro e fora do País, para que se consuma e venda mais; montar as indústrias da guerra e, principalmente, a construção naval e aérea, para nos defendermos, como é natural, de dentro para fora; armar o Brasil para que as classes armadas possam ter, materialmente, esse nome etc.
Não faltará a política dos planos, contanto que se cristalizem as soluções adequadas.
O que importa, muito mais do que a proliferação das iniciativas fáceis, são as qualidades morais da ação. É o caráter que constrói: a coragem das resoluções; o entusiasmo fecundo; o método; a tenacidade; a resistência aos interesses contrários e, acima de tudo, espírito público.
Por uma recomposição geral, a máquina administrativa funcionará, no seu conjunto, peça por peça, com um só ritmo, sem emperros, sem desconexão e, sobretudo, sem as descontinuidades que a esterilizam. E não se dará o mal das soluções parciais, sem supervisão, cuidando de parte, antes de conhecer o todo.
Se patriotas retardados continuam a aprazar-me para a enunciação do meu programa, direi, desde logo, que tenho um. É o maior e o menor de todos: "Prometo manter e cumprir com lealdade a Constituição Federal, promovendo o bem geral do Brasil, observar as leis, sustentar-lhe a união, a integridade e a independência". Não passa do compromisso constitucional. Não só prometo, como juro. Na verdade, se a Constituição não for letra morta, o Governo também não o será. E o Brasil se salvará do pessimismo inato que o julga um país perdido. Eu nunca cometi essa heresia. Perdidos são os brasileiros que procuram perdê-lo.
Antes de me empossar, antes de eleito, presto, perante o povo, que é um juiz terrível, o juramento sagrado de promover o bem geral, não de boca, como uma formalidade vã, mas de alma e coração.
A Constituição de 16 de julho prescreve, sem embargo de sua falta de unidade, os fundamentos de uma nova construção da democracia brasileira: um nacionalismo que não repudia, nem se despoja; a fiscalização financeira apta a moralizar as despesas, que é moralizar tudo mais; um regime de responsabilidade, de alto a baixo, como instrumento de reabilitação da vida pública; os direitos políticos e os direitos e garantias individuais, sem a hipocrisia liberal das ditaduras de fato.
Começarei por dar o exemplo da independência dos poderes; nem me intrometerei nos outros, nem cederei o meu. E a coordenação dos órgãos da soberania nacional se exercerá com um pensamento mais puro e fecundo da boa administração, das boas leis, da boa justiça. Assim, sem enfraquecer os outros, tornar-me-ei, por minha vez, mais forte. Faremos essa experiência que não será a primeira, nem a última, mas será a minha.
Com uma direção efetiva, em vez da atividade fragmentária e desigual, o Governo não se diluirá na irresponsabilidade estéril. Basta fixar o sistema administrativo e os preceitos do seu funcionamento. Será essa a melhor inovação, a réplica liberal às organizações absorventes. Basta formar a alma democrática e racionalizar a democracia; criar o espírito público e racionalizar a administração.
Hei de dar o bom exemplo. O melhor exemplo é o que vem do alto, como meio de educar pela imitação, em toda escala, do Presidente da República ao Ministro, do Ministro ao chefe de serviço, do chefe de serviço ao oficial, do oficial ao contínuo. E o Brasil poderá realizar o destino das grandes nações organizadas com as reservas morais e materiais que raras possuem.As franquias do regime não servirão de obstáculo a essa transformação normal; serão ouro sobre azul. Se for preciso, o poder público se constituirá em árbitro do interesse geral, regulando, nesse interesse, a própria liberdade. O Estado deixará de ser apenas uma máquina jurídica para ser também uma máquina econômica.
Veremos quais sejam os problemas do dia e correremos aos mais urgentes, com um programa do seu tempo.

Precedentes de ação
Meus próprios inimigos poderiam escusar-se dessa exposição formalística. Minha plataforma é um passado que exprime um futuro e autoriza a confiança no que farei, por conta própria, pelo que fiz, tendo feito o que pude e não tudo o que quis. Será a reafirmação de um lastro de atividades úteis, da amostra de gosto do trabalho que já dei, de um título que documentos concretos me conferem.
Rui Barbosa dizia que seu programa era a sua vida e eu poderei dizer, sem me gabar, que meu programa é a minha obra. Ainda colheis os frutos dessa semeadura. Fui membro de um governo, cujo chefe outorgava aos seus Ministros toda a faculdade de ação. A visão de conjunto era, naturalmente, dele; mas, a par dessa coordenação geral, ressaltava a iniciativa dos auxiliares, com métodos próprios. Com esse sentimento público, nunca desaprovou os mais arrojados cometimentos de um temperamento de reforma.
Extraio de um dos meus discursos na Assembléia Nacional Constituinte uma passagem que documenta essa disposição de sacrifício:"Depois de estabelecido o princípio do monopólio das comunicações em geral, deparou-se-me um obstáculo que parecia invencível. Fechadas as primeiras estações radiotelegráficas, restava uma empresa poderosa que atribuíra à revolução triunfante o mais inestimável concurso: a Telefônica Rio-Grandense. O Chefe do Governo ponderou o valor desses serviços, advertindo-me de que sem sua atuação não se teria, talvez, alcançado a vitória no Sul. Era preciso, porém, que seu Estado desse o exemplo de renúncia. A Telefônica resistia. Um dia fui avisado de que sua agência, na Avenida Rio Branco, continuava funcionando. Dei ordens terminantes ao diretor-geral dos Telégrafos para fechá-la, e ele informou que o diretor da companhia respondera não depender sua situação do Ministério da Viação, mas do Catete. Telefonei, então, ao secretário do Governo: 'Hoje, ou se fecha o Ministério da Viação ou a Telefônica Rio-Grandense'.
O Sr. Getúlio Vargas mandou chamar-me e me disse que eu estava fazendo uma tempestade num copo de água. Autorizou-me a expedir ordens decisivas para que se encerrasse esse incidente."Poderei, desse modo, indicar, como minhas, as realizações em favor do povo carioca, que exprimem esse cunho inicial.
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A casa do pobre


Sem alardes sentimentais, exercitei esse espírito de proteção, em favor do povo carioca, do que nunca fiz praça, mas faço agora propaganda. A alegria das favelas é uma alegria que faz pena. Até os sambas, tão humanos e espontâneos, parecem, em dias difíceis, passos de almas penadas, fazendo penitência.
A gente avista, de longe, a poesia dos morros, uma paisagem irreal, debruçada sobre a paisagem chata da cidade: cachos de casas, escada de casas, casas escorregando uma por cima das outras. E panos velhos nos varais, rasgados pelo vento, têm o ar de bandeirolas festivas. Mas, de dentro, é um primitivismo miserável. Faz de conta que é casa.
Asfixia-se, embaixo, a população dos cortiços, ainda mais desgraçada: dezenas de famílias misérrimas, pegando vícios, pegando doenças, pegando tudo; brigas de guris amontoados, e as mães tomando as dores pelos filhos. É verdade. Não há um minuto de paz.
Como Ministro da Viação, eu não tinha nada a ver com isso. Mas quantas cogitações me sugeriam esses quadros dolorosos! O que me interessava era apresentar os saldos na exploração dos serviços do Estado. Não prejudicar meu programa de correção de deficits. Havia, entretanto, os deveres da revolução, um pensamento mais alto de solidariedade da raça.
Pensei que poderia contribuir com a minha cota de boa vontade para minorar as aperturas dessa superpopulação comprimida. E, desde 1931, promovi a redução das passagens das linhas de subúrbio e de pequeno percurso da Central do Brasil, visando a facilitar o escoamento de uma parte dos moradores pelos bairros mais desafogados. Depois, a diretoria da Estrada reclamava que essa concessão se tornava responsável pela depressão da renda. E eu não cedia: haveria outros meios de compensar o deficit.
Demos habitação ao pobre. Não casa de cachorro. Seja pequenina, seja um figurino, mas seja de gente. Não só a construção proletária, como a moradia do funcionário, do comerciário, do bancário, do marítimo, do ferroviário, desses que não têm onde morar ou morrem de fome para pagar o aluguel. E eles se lembrarão que também são deste mundo.
Cada casa será, mais do que o ambiente íntimo, o ambiente social de resistência da família feliz ao espírito subversivo do seu próprio chefe. E o dinheiro? É sempre a pergunta mole, desanimada, a pergunta que fica no ar. É fácil. É facílimo. Eu sei onde está o dinheiro. Em vez de um arranha-céu, serão duzentas casas.
A redução do preço das passagens foi o primeiro benefício que promovi, em vosso favor, na solução do problema de habitação, que não me competia, mas me parecia, mais do que uma crise, um verdadeiro crime. Agora, poderei enfrentá-lo, porque me competirá.

Sombras na grande luz

Quando assumi a pasta, a Light tinha outro nome: era o "polvo". Assim se chamava na boca dos pequenos consumidores.
Levei um ano a fio, apelando para seus diretores: vamos reconciliar a Light com o povo. Vamos baratear os preços de gás e luz para que se chame mesmo a Light, e não o "polvo". E faziam ouvidos de mercador. Faziam pouco de mim, porque eu tinha maneiras tímidas e não ameaçava.Viam-se casas no escuro. Donas de casas não tiravam o olho do interruptor, acendendo e apagando, apagando e acendendo. E dormia-se cedo por economia. Os lares humildes eram manchas na grande luz.
Resolvi ouvir os técnicos, e muitos se escusavam, alegando que os governos passavam e a Light ficava.
O meu dever era tornar essas utilidades mais acessíveis. Parecia uma aventura. Mas que é que eu podia perder? Só o lugar que não me faria falta; estava acostumando a viver sem posição.
Conseguira a redução do preço do gás, em favor dos pequenos consumidores, em número de 25.007, que passaram a pagar $144, em vez de $200 por metro cúbico. Impusera a hora de economia de luz no verão. E não consegui mais nada, apesar dos rogos.
Um dia, sem ninguém esperar, antes mesmo de preparar o expediente oficial, publiquei na imprensa o decreto destinado a remover essa resistência, para que a pressão também se exercesse de fora. E o Sr. Getúlio Vargas não me faltou com a mão forte.
Sofri a campanha mais brutal. Não consentindo que a censura de imprensa se exercesse em meu favor, fui arrastado pela rua das amarguras, sem me queixar, antes satisfeito, porque me desobrigara de um compromisso de consciência.
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Hoje o consumo aumentou. As casas mais pobres se aclaram, e a Light já não tem razões de queixa contra mim, porque, noutro caso, lhe fiz justiça e farei tantas vezes merecê-la, embora os recibos tragam ainda o carimbo do decreto que é minha constante propaganda eleitoral.
O melhor é que o povo carioca já fez a economia de mais de trezentos mil contos que a Light teria recebido a mais pelas tarifas antigas. Quando a cidade se ilumina, com o Cristo Redentor faiscando, no alto, envolto dos raios de luz que lhe presenteei, sinto uma grande claridade na consciência.
Uma tragédia crônica
No meu tempo, houve raros desastres na Central. Se é fraca a memória dos homens, as estatísticas registram uma justiça irrevogável. Mesmo que não houvesse desastre, o tráfego suburbano era um cenário de tragédia, com um mundo de pingentes dependurados em trens podres. Reproduzia-se esse quadro emocional, sem se contar mais o tempo. Eram hecatombes triviais, com os montões de corpos espatifados e muitas risadas nos teatros populares, onde a Central não chegava atrasada.
Eu não podia fechar os olhos a essa desolação. Minha sentimentalidade não me dá vontade de chorar, mas procura remédio para os males alheios.
Não resisti aos apelos de ordem técnica, econômica e, sobretudo, humanitária que esse problema formulava. E a tragédia passou também a ser minha. Ninguém acreditava que, num tempo encalacrado, de falta de confiança, de retração de crédito, se pudesse realizar uma obra que já se frustrara em tantas tentativas promissoras. Metiam a bulha nessa minha pretensão julgada destituída de qualquer senso prático.Primeiro, foi a crise dos estudos. O maior técnico em eletrificação abandonou a estrada para não incorrer na responsabilidade de um empreendimento precário. Chocaram-se rivalidades, com incidentes incômodos, embora houvesse, no começo, uma mocidade comunicativa a acender o entusiasmo da iniciativa.
Não desanimei. Realizou-se, em tempo, a concorrência. E qual não foi a surpresa dos mais cépticos com o interesse manifestado por empresas das mais idôneas, de conceito mundial?Seguiu-se outra fase que me pôs à prova toda a força de vontade. E, por minha conta, aprovei a proposta considerada mais vantajosa pela comissão julgadora que compus, para ficar a coberto de qualquer maledicência, de representantes das principais instituições de engenharia e escolas superiores do País.
Consumiu-se mais um ano sem andamento do processo, numa espera angustiosa, com o meu nome empenhado pelo ato da aprovação, em despacho fundamentado, da proposta preferida.Até que, uma vez, falei ao Ministro da Fazenda, que já se achava de malas preparadas para a Embaixada de Washington: você vai desfrutar o conforto de uma civilização modelar; quando chegar por lá a notícia dos desastres da Central, sentirá doer-lhe a consciência.
Desde esse momento, abriu-se-lhe o grande coração, passando a regular todas as providências que faltavam, na parte financeira, para a lavratura do contrato vencendo mesmo, com a têmpera mais decidida, algumas relutâncias do Banco do Brasil.
O Chefe do Governo deu-me o seu decisivo apoio.
Não fraquejei. Deixei o contrato da eletrificação em ordem, e a Metropolitan Wickers executou-o, mediante a fiscalização do Ministério da Viação, que teve de atender também às obras complementares.
Os trens elétricos estão correndo. Essa iniciativa ninguém me tira, porque me custou dispêndios de sacrifícios que me marcaram a alma. É um quadro de soluções objetivas: o aparelhamento de estradas em petição de miséria; a eletrificação do parque ferroviário; a solução dos transportes urbanos.
Prolongarei as linhas elétricas da Central e farei o possível para que a Leopoldina aperfeiçoe os seus serviços, embora com ônus para o Governo. E o metropolismo não tardará. Assim, o tráfego deixará de ser um jogo de paciência e um devorador de vidas para ser um belo desafogo.Pelo que fiz poderei avaliar o que farei nesse terreno.
O horror do pântano

Encarei os efeitos desastrosos do sol e da água. Voei, primeiro, para acudir à aflição do Nordeste. Caí e fiz da Santa Casa de Misericórdia da Bahia meu ministério trabalhoso, sem ter deixado, um momento, de cuidar, com alma de irmão, dos infortúnios da seca.
Mal refeito, voei, de novo, para ir atravessar o ambiente de fome e peste, com o mesmo interesse humano.
Nos sertões, era a seca e aqui, à beira da cidade, era o horror da baixada fluminense, com a população invisível que a infestava.
Meu sentido humanitário não podia recusar essa assistência a um povo atolado na podridão. A seca ia e vinha, mas o pântano não havia sol que secasse. Não era terra nem água. Era a lama paludosa, o chão empapado, enterrando viva a gente mais sofredora do Brasil.
Dava febre. A terra toda anuviava-se de mosquitamas mortíferas. Pegavam outras doenças, o amarelão mudava a cor da vida.
Rescindi o contrato velho de dez anos que não ia nem vinha; promovi a indenização para abrir o caminho; mandei proceder ao estudo de conjunto e encontrei o homem para realizar a obra.
Já se opera a transformação. Retraem-se as enchentes espraiadas; descobrem-se latifúndios de valor que viviam debaixo de água; goza-se saúde e a área perdida cobre-se de vida nova.
É uma indicação da política de aproveitamento que nos convém, com um resultado tão notável como o da campanha romana.
São os problemas da terra, na sua feição mais sábia de correção da natureza, fechando os boqueirões e entupindo os pauis. Aplicarei essa iniciativa, em maior escala, valorizando-a com a colonização permanente, como padrão de outros empreendimentos nos territórios abandonados.
Falo-vos na Baixada Fluminense, que será vosso maior celeiro. Quando ela, além do benefício que o seu saneamento representa, completar a paisagem de pomares saborosos e de culturas pródigas, não haverá tanta fome nas favelas cariocas.
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O candidato pobre

Não me seduz a designação vulgar de "candidato pobre". Pobreza não recomenda; recomenda é ter tido facilidades de ser rico e ser mais pobre. O que eu sou, com a mais comovida satisfação, é candidato dos pobres.
Confesso que, de fato, não são os governadores contra mim, menos dois que estão com o meu competidor - isso mesmo porque desobriguei um deles, na undécima hora, senão seria um só. São os representantes do poder constituído que vêem na minha candidatura uma solução normal assegurada pela legitimidade democrática das maiorias.
Declaro, por igual, que conto ainda com os partidos que apóiam os governadores, exceto dois que deram preferência ao meu antagonista, um dos quais chefiado pelo próprio Governador com ele solidário. Sou, apesar de considerado pelos contrários como candidato oficial, o escolhido de todas as oposições, do Centro, do Norte, do Sul, salvo as de Mato Grosso, Minas, Bahia e Amazonas, sendo de admirar que em alguns Estados foi aceita a minha candidatura por duas e até mais dessas agremiações independentes. E o mais curioso é que me prestigiam as próprias oposições de São Paulo e Rio Grande do Sul, onde meu competidor só dispõe dos elementos oficiais, sendo que no meu Estado a oposição me acompanha, na sua totalidade.
Os partidos, situacionistas ou não, compõem-se da mesma variedade do eleitorado de todas as condições, de todas as cores, de ambos os sexos.
O que eu sou, conseqüentemente, é candidato do povo brasileiro, dos ricos e dos pobres, sobretudo dos últimos, dos que não esperam ser ricos, mas esperam ser felizes. Candidato da grande maioria dos brasileiros, que vivem na pobreza, que é humildade, e não demagogia. Não porque me faltem bens de fortuna, senão porque nunca deixei de nutrir o sentimento coletivo, como evidenciei, no tempo de ministro, procurando desafogar as condições de vida das classes desamparadas, barateando os preços de gás e luz, reduzindo as taxas postais e telegráficas, as tarifas ferroviárias, os fretes marítimos, todos os serviços industriais a meu cargo. E tendo um gabinete de portas abertas; indo socorrer em pessoa os sem-trabalho da seca, com risco de vida; amparando o direito dos mais fracos e nunca deixando de fazer o bem para fazer o mal.
Eis por que - não me canso de repetir - sou candidato do povo, inclusive dos que votarão em mim levantando as mãos aos céus por não saberem ler nem escrever.
Não embairei sua boa-fé. Pior do que explorar o dinheiro dos ricos é explorar a boa fé dos pobres.
Se pensam que é com dinheiro que se ganha, estão enganados. Ganha-se é com o povo. Nas eleições, o povo que nada tem é que dá tudo.

Os problemas humanos
Consciências inquietas profetizam, em vozes tremendas, adventos ruidosos. Atiçam a miséria impotente, as explosões da coragem coletiva, com risco dos choques desiguais. Não percamos a esperança. Poderemos, sem maldições, sem desforras sangrentas, na paz do Senhor, atingir o ideal democrático da inteligência, da cultura, das virtudes públicas, do bom governo que é a melhor propaganda contra as subversões.
Não serão auroras messiânicas. Basta que o Estado moderno cumpra a sua missão, em vez de exercer, apenas, a tutela da ordem pública.
Eduquemos a pobreza, a fim de que ela compreenda o seu papel nessa nova civilização brasileira de valores espirituais, morais e econômicos.
O á-bê-cê não adianta. Pratiquemos a democracia do ensino técnico-profissional ao alcance de todos, como o meio mais prático de começarmos a organizar o Brasil que só precisa de organização. E incorporemos os intelectuais que precisam trabalhar como ornamento político e um atributo mais útil da mentalidade oficial. A inteligência será a guardiã da democracia.
E não deixemos a ralé passar necessidade. Olhemos as multidões desfeitas como o mais doloroso contraste de nossa pujança natural. Dirão que isso acontece em toda parte, desde que o mundo é mundo; mas, é um crime maior acontecer no Brasil.
A melhor forma de abafar os gritos de revolta é encher a boca dos famintos. Ninguém grita de boca cheia. Os pobres comem pouco. O passadio insuficiente tira-lhes o resto da vida. As subpopulações do interior ainda passam, porque Deus encheu o Brasil de pomares nativos, de vitaminas baratas. E os ricos comem mal, envenenando-se com os erros de alimentação de uma cozinha bárbara. Ainda não se vulgarizou, no Brasil, a ciência da nutrição, que preocupa povos mais atrasados, com sua organização experimental.
Já que não podemos elevar, de uma hora para outra, esse padrão de vida, pela impossibilidade do ajustamento imediato num país de salários chineses e de economia incipiente, de tão mesquinha capacidade de aquisição, procuremos, pelo menos, reduzir-lhe o custo. Tenho um precedente que me dá esperança de acudir a esse problema. Na seca mais tremenda, com as lavouras desfeitas, sem um caroço de milho ou de feijão, evitei a carestia de vida no campo e nas cidades do Nordeste. Maior fora a penúria em tempos normais. Primeiro abarrotei esses lugares de gêneros alimentícios, com o caráter de campanha, servindo-me de todos os recursos ao meu alcance. Em seguida, para não prejudicar o comércio local, permiti a concorrência, reduzindo os fretes e impondo, em compensação, uma pauta razoável. E não houve alta.
Os retirantes tomaram ainda o café condenado à queima com o açúcar da quota de sacrifício, que eu ia conseguindo, a muito custo, para que a calamidade lhes amargasse menos.
Essas coisas são fáceis para quem quer vencê-las, de verdade, sem medo de ser vencido.
Por que morrem tantos meninos? Pela ordem natural das coisas, o primeiro gesto do homem de governo deveria ser curvar-se sobre os berços da pobreza, para evitar que as crianças cresçam doentes. Podemos aparelhar nosso futuro até com gerações de analfabetos; nunca com gerações de enfermos.
São poucas todas as maternidades e todas as creches. O que mais falta, porém, é a escola que ensina a ler e a viver.
Por que já rareiam os velhos no povo baixo? Há, talvez, muitos hospitais, mas é pouca a educação sanitária para evitar as doenças.
Demos os meios à mulher para que ela construa, além do lar, a sua própria vida, a fim de que, quando deixar de ser o ornamento decorativo da graça, da beleza e das virtudes da raça, não se transforme na parte mais infeliz da sociedade.
Aperfeiçoamos o corpo e a alma, pela oficialização da cultura física e proteção dos desportos, pela alegria de viver. Com todo o seu potencial de riqueza, o Brasil não pode continuar com as camadas inferiores sofrendo miséria e doença, desnutridas e achacadas.
Prometem nutrir, vestir, curar. Mas o dia de amanhã é nosso pior dia: não chega nunca.
A mais instante tarefa de governo é a solução dos problemas humanos.

O centro que oscila


Não tenham medo, meus amigos: ninguém tirará a fortuna alheia. Meu desejo é que todos os brasileiros fiquem ricos; assim o Governo se tornará menos pesado. O que faz receio é deixar a miséria fermentar. A idéia nova só é perigosa quando é falsa.
O nosso homem de governo, mesmo com o coração batendo do lado esquerdo, será sempre o homem do centro. É a posição de equilíbrio que regula as contradições do nosso tempo. Poderá oscilar, sem tocar os extremos que se confundem e se chocam, voltando-se para o clamor das necessidades, sua função mais imperativa.
A justiça e a caridade são leis divinas e humanas. São as missões sobrenaturais que aproximam o homem de Deus. A inteligência pode ser sectária, mas o coração é sempre idealista.Vemos com satisfação que já muito se fez. A revolução cumpriu até agora seus compromissos de solidariedade nacional, procurando equilibrar uma sociedade desajustada.Serei o continuador dessa empresa humanitária, aperfeiçoando a política trabalhista, com um ritmo mais brasileiro, para que os interesses se organizem, sem choques dissolventes. Para que, em vez de planar tão alto, seja mais objetiva na concessão do benefício imediato. Para que seja igual e se preserve das injunções intrusas.
O Ministério do Trabalho terá de ser, simplesmente, o Ministério do Trabalho, para preencher toda sua finalidade, sem atividades estranhas ao seu campo de ação. A indústria e o comércio ajustar-se-ão a outros setores que se tocam numa perturbadora complexidade. O trabalho é tudo; trabalhador não é somente o proletário. Será o ministério das profissões, da representação das classes, do controle das leis trabalhistas, da justiça do trabalho e da organização da previdência. Será, notadamente, o ministério dos que não têm profissão para que passem a tê-la.
Não há braços e há vadios. Uma legião de desocupados que não encontram emprego, porque não temos trabalho organizado, nem quem os encaminhe para a profissão mais adequada.
Será o ministério que, antes de conhecer a vida do trabalhador, procure conhecer as condições do trabalho, para só exigir o que se pode dar e suprir o que falta. O contrário seriam dois pobres, em vez de um, pedindo a mesma esmola.
Será o ministério da estabilidade de uma civilização sentimental das três raças que se fundiram no sangue e na alma.
Será, acima de tudo, o ministério dos pobres, dos inválidos, dos órfãos, dos velhos, de todos os que sofrem e precisam, por uma organização mais assídua, da assistência e da previdência sociais.
Procurarei assegurar, além da vida mais fácil, uma justiça igual e mais liberdade individual. Para os pobres quase tudo é proibido.
E imporei a ordem. Não com a disciplina dos infernos, coberta de sangue do comunismo sombrio como um rolo compressor e do integralismo estrangeiro que ainda agora tenta implantar-se, com ameaças de punição aos indiferentes e de massacres coletivos, como se a consciência livre, mais bravia do que a força bruta, tivesse medo de caretas. Transfundiu-se-me com a idade, o amor à luta em energia moral que é uma coragem maior. Rio-me dessas ameaças, apontando a mais terrível: a desgraça que seria para um povo de tanta doçura de sentimentos a vitória dessa sede de sangue, pior que a sede de ouro.
Para alcançar o ideal de felicidade coletiva basta tornar o Brasil mais produtivo. Criar a prosperidade que não se tira da boca dos pobres, mas do trabalho racional.
Falo assim porque tenho sido um criador de riquezas: as barragens feitas; a recuperação da baixada fluminense; milhares de quilômetros de estrada de rodagem; ferrovias melhoradas; portos e aeródromos. Foi esse o meu primeiro impulso; poderei ser um instrumento de maiores realizações.
Deixarei vir todo o ouro do mundo sem procurar saber donde vem, mas somente se é honesto ou suspeito.Não tenho dinheiro de contado para as dissipações eleitorais, mas darei muito mais. Posso fazer a promessa de dias melhores, do benefício permanente que, sem ser de ninguém, será de todos.
Não prometo negócios da China, panamás, coisas do outro mundo. Minhas soluções são primárias. Quero começar, sem complicar as coisas, de baixo para cima, como se constrói.
Fui eu que inscrevi no preâmbulo da Constituição a legenda do bem-estar social e econômico. Tomei esse compromisso sem saber que ele cairia sobre os meus ombros.Só desejo uma felicidade para o meu governo: a de tornar o povo mais feliz. Demos a cada um seu quinhão de felicidade que o Brasil chega para todos.
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Os últimos grandes comícios que eu assisti foram do MDB, aqui em Recife.
Sem discutir o mérito das propostas, com a qualidade de candidatos que temos hoje, Brasil afora, é mais fácil mesmo contratar uma boa banda de forró ou de brega para animar o showmício.
Com o tempo perdido nos conchavos, sem propostas e sem ter mesmo o que dizer, os últimos comícios que fui no interior foram um desalento. Faltou palavra e conteúdo. Deu pena.
É melhor mesmo mandar a banda tocar!!!


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