sexta-feira, 18 de abril de 2008

Cheias ameaçam moradias precárias e acabam com "ganha-pão" de moradores

(Breno Castro Alves
Especial para o UOL
Em Ipaumirim (CE)
15/04/2008 - 08h00


A Rua E determina o limite entre o bairro São José e plantações em terras mais baixas ao longo do riacho Pendências, que passa a algumas dezenas de metros dali. Diversos córregos de esgoto a céu aberto competem pelo melhor caminho entre o relevo acidentado da via de terra, desenhado por pedregulhos e elevações irregulares. Vinte e três casas de taipa ocupam a parte mais baixa da rua e cerca de 600 pessoas vivem no bairro, o mais pobre de Ipaumirim (CE).

Por muitas horas no dia 9 de abril deste ano, a Rua E deixou de existir. Foi substituída pela massa de água lamacenta que inundou terras do município após dois açudes particulares cederem. Em uma área extensa, do tamanho de diversos campos de futebol ao longo do Pendências, apenas algumas árvores, os maiores pés de milho e a cerca que acompanha toda a Rua E ficaram emersos sobre as águas torrenciais.

Um dia depois das chuvas, sentado no chão batido de terra de sua sala, Francisco Washington Alves retira grãos de feijão de um punhado de vagens. Havia plantado dois hectares da cultura nas terras para lá da Rua E e aquilo foi tudo que conseguiu salvar. Estima que colheria em julho cerca de oito sacas de 60 kg, que venderia a R$ 4 o quilo, totalizando quase R$ 2.000. "Agora só sobrou isso daqui. Deve dar para a refeição de uns dois dias daqui de casa", diz, pensando nos estômagos de sua mulher, dos três filhos e no próprio.

O feijão, quando submerso, começa a brotar ainda dentro da vagem e mofa rapidamente. Washington ainda não mediu os estragos em sua plantação de milho, mas acredita que conseguirá salvar uma ou duas receitas de pamonha e uma canjica. O jerimum (abóbora) foi-se todo, não aguenta chuva.
Sua casa possui dois cômodos, uma sala sem móveis e um quarto-cozinha onde estão todos os poucos pertences da família. A moradia precária é de Taipa e vale R$ 1.200. Não sabe dizer com certeza quantas casas semelhantes a sua já construiu ou ajudou amigos a construir. Perdeu a última nas chuvas do ano retrasado: "A gente não tem cimento, então a água umedece o barro e ele vai caindo com as chuvas", diz, explicando o processo que leva sua casa a ceder aos poucos. E com a mesma desenvoltura explica o processo de construção da simples moradia.


A escura casa de taipa


Primeiro enfia-se o mais fundo possível no chão as forquilhas, troncos grossos que serão a base da estrutura e que sustentarão o telhado. Entre uma coluna e outra se coloca o enchimento, troncos mais finos para diminuir os espaços vazios. A próxima camada de madeira vem com as varas, compridas e dispostas na horizontal, colocadas em dupla ao redor da estrutura vertical e amarradas entre si com arame. Preenche-se o máximo de espaços vazios com pedras ou restos de tijolo. Então é a vez do barro, que é molhado e socado nos vãos deixados. O telhado vem por último, vigas simples cruzadas sustentando telhas de cerâmica. Deixe ao sol por quatro ou cinco dias e pronto, está construída uma casa de Taipa.

O processo mais simples ignora detalhes como rede de água, luz e esgoto. Os banheiros, sempre nos quintais, vertem água e excrementos humanos em trajetos delimitados, por vezes canalizados precariamente. Os líquidos seguem seu caminho natural imposto por gravidade e relevo, formando uma malha de valetas negras que se confundem nos quintais dos vizinhos. Todo o esgoto do São José desce por caminhos definidos em direção à Rua E, ponto mais baixo do bairro. Quando chove, porém, as águas subvertem seu curso tradicional e passeiam pelas casas.

E é na rua que José Marcio dos Santos, o Bento, chama a atenção para a precariedade de sua casa, que está cedendo. "Venha ver meu patrão, venha ver o que as chuvas fizeram", diz. Bento teve hanseníase e ainda possui seqüelas, que, além de uma doença de pele extensa, marcam todo seu corpo com manchas brancas que descamam. Ele está com Renata, sua filha de três anos, que caminha descalça pulando entre a malha de esgoto da rua.
A casa de Bento é, de fato, uma das mais precárias da rua. À estrutura descrita por Washington foi acrescentada em algum momento uma camada de reboco. Este momento passou faz tempo, hoje a parede da frente de sua casa está perto do colapso. Em alguns pontos se vê a estrutura de madeira por baixo do concreto e do barro; em outros pontos não se vê nada, apenas a rua além dos buracos. A distância vazia entre parede e teto chega a 20 cm em alguns pontos e seu formato perigosamente côncavo denota uma estrutura em estado crítico.

Bento é açougueiro. Toda sexta-feira à noite mata os bois que alimentarão a feira da cidade no sábado. Não recebe dinheiro, mas sim três ou quatro quilos de carne por dia de trabalho. É sua única ocupação fixa na semana e troca os frutos de seu suor por comida. A mesa da família conta com arroz, feijão, farinha de milho, de trigo e macarrão. Carne, ovos e verduras (apenas tomate e cebola) são exceções, com sorte dois ou três dias da semana contam com qualquer um deles. Se dependesse de seus filhos, porém, macarrão instantâneo é o que a família comeria todos os dias. Ganha cerca de R$ 40 por mês fazendo pouquíssimos bicos ao longo da semana e outros R$ 94 pelo Bolsa-Família, unanimidade entre os moradores de São José. É toda a renda de cinco pessoas.

"Aqui não existe essa coisa de trabalho não", diz. Não é que Bento seja preguiçoso. Não é. Se alguém lhe pedisse, passaria oito, dez, doze horas fazendo o que sabe fazer, como limpar terrenos ou matar bois, por dez, talvez quinze reais ao dia. Procede que ele não enxerga qualquer outra perspectiva de trabalho. Empreendorismo e criatividade são qualidades que inexistem por ali.

"Você não pensa em trabalhar na cidade, fazer qualquer coisa, lavar carro por trocado?", pergunto. "Mas já tem lava-rápido lá. Tudo que a gente pode fazer o povo já tem feito", avalia, ignorando completamente qualquer possibilidade de sucesso em uma competição comercial.

Bento é um excelente criador de gaiolas e viveiros de pássaros, guarda com carinho a sacola com as ferramentas necessárias. "Se alguém me desse as telas eu vendia por R$ 15", "mas ninguém vai te dar isso, você tem que correr atrás", "então aí fica muito caro para vender. Não adianta fazer nada", conclui.


Doce até debaixo d´água

Por volta das 7h da manhã do dia 9, a água cobria os tornozelos de Big Dog e seu empregado mais antigo, João Paulo. Os dois se encarregaram de dispensar os trabalhadores que chegavam à fábrica Big Doce, paralisada naquela terça-feira pelas chuvas que se arrastavam desde as 19h da véspera. Então, em pouco menos de uma hora, o nível da água cresceu vertiginosamente, atingindo cerca de 1,70m de altura antes das 8h.



Big e João tiveram tempo de erguer um freezer, retirar o computador da administração e salvar algumas cocadas antes da água se aproximar das instalações elétricas da fábrica e impedir novas entradas. "A coragem já não é muita né, aí minha mãe me ligou pedindo que não entrasse mais. E você sabe como são essas coisas de mãe", relembra João. Resultado, sessenta sacas de 50 kg de açúcar se reduziram a lama adoçada e dois freezers queimaram. Centenas de cocadas foram submersas e se dissolveram sob as águas, totalizando um prejuízo de mais de R$ 5.000.

Porém "nunca esteve tão bom quanto agora", afirma dois dias após a enchente o otimista Big Dog, aliás Ivanilton Augusto Josué, "mas pode escrever Big Dog mesmo", apelido herdado de seus dias de vendedor de lanches. Há apenas dois anos ele começou a produzir cocada em sua cozinha e vender na calçada de casa. Utilizava seis litros de leite por dia, hoje são 800 ou 900. "Tomei esse prejuízo aí? Tomei, mas eu sou feliz acima disso, aqui é produzindo e vendendo o dia inteiro".

O terreno onde está a fábrica fica na várzea do riacho Pendências, bem próximo ao curso d´água, mas a oferta pelas terras foi irrecusável, R$ 1.500 a serem pagos em cocada a um de seus vendedores. Big aceitou a oferta e, há um ano e dois meses, pegou um empréstimo de R$5.000 no banco para começar a empreitada. Outros R$ 9.000 comprou fiado com o dono de uma das lojas de material de construção da cidade. Cinco meses depois, a fábrica estava em funcionamento com seus 15 empregados e produção de 23.000 cocadas diárias.

Independente do risco de inundações no local, Big planeja ampliar as instalações e deve concluir um anexo ao prédio em cerca de 30 dias. Não se lembra da última enchente por ali, mas sabe que é apenas uma questão de tempo até a próxima acontecer. Mesmo assim não se abala: "O pessoal daqui precisa trabalhar mais e chorar menos".

Desenvolveu sua veia empreendedora em São Paulo, onde morou alguns anos. Admira a capacidade de trabalho do paulistano - "lá, se não trabalhar não come, então todo mundo precisa se virar. Aqui quase não tem gastos, então dá pra ir levando" - e acredita que se houvessem mais quatro ou cinco como ele na cidade, a realidade de Ipaumirim era outra.

Desde que voltou do sudeste já vendeu lanche na rua, teve padaria, perdeu tudo, vendeu remédios de porta em porta, aprendeu uma receita de cocada, a aperfeiçoou e começou a vender na calçada. Estudou até a oitava série, "e mal", credita seu sucesso à força de vontade e dedicação. Não acha que mais escolas mudariam a situação de seus conterrâneos miseráveis: "educação não resolve, falta é coragem para trabalhar. Esse povo vai se matar de estudar química, física, pra que?", demonstrando o descompasso entre o modelo educacional vigente e as necessidades locais do interior.

De dentro de sua fábrica funcionando mesmo com a marca d´água nas paredes ainda fresca, Big Dog é exemplo do empreendedor de sucesso, do self-made man sertanejo, para quem educação escolar sempre foi fator neutro em sua vida profissional, diferente dos realmente diferenciais determinação, sorte e talento pessoal. "Perdi bastante? Perdi, mas já está melhorando. Olha o solzinho saindo, graças a Deus". Cocadas precisam de sol para secar.

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