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sábado, 8 de dezembro de 2012
A poesia, sempre
Álvaro de Campos PRIMEIRO EXCERTO DE DUAS ODES
Vem, Noite antiquíssima e idêntica
Noite rainha nascida destronada
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de infinito
Vem, vagamente, Vem, levemente, Vem sozinha, solene, com as mãos caídas Ao teu lado, vem E traz os montes longínquos para ao pé das árvores próximas, Funde num campo teu todos os campos que vejo, Faze da montanha um bloco só do teu corpo, Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo, Todas as estradas que a sobem, Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe, Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores, E deixa só uma luz e outra luz e mais outra, Na distância imprecisa e vagamente perturbadora, Na distância subitamente impossível de percorrer.
Nossa Senhora Das coisas impossíveis que procuramos em vão, Dos
sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela, Dos propósitos que nos
acariciam Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas Ao som europeu
das músicas e das vozes longe e perto, E que doem por sabermos que nunca os
realizaremos... Vem e embala-nos, Vem e afaga-nos. Beija-nos
silenciosamente na fronte, Tão levemente na fronte que não saibamos que nos
beijam Senão por uma diferença na alma. E um vago soluço partindo
melodiosamente Do antiquíssimo de nós Onde têm raiz todas essas árvores
de maravilha Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos Porque os
sabemos fora de relação com o que há na vida.
Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia De uma oculta vontade de soluçar, Talvez porque
a alma é grande e a vida pequena, E todos os gestos não saem do nosso corpo,
E só alcançamos onde o nosso braço chega, E só vemos até onde chega o
nosso olhar.
Vem, dolorosa, Mater-Dolorosa das Angústias dos
Tímidos, Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados. Mão fresca sobre
a testa em febre dos Humildes. Sabor de água sobre os lábios secos dos
Cansados. Vem, lá do fundo Do horizonte lívido, Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade Onde vicejo. Apanha-me do meu
solo, malmequer esquecido, Folha a folha lê em mim não sei que sina E
desfolha-me para teu agrado, Para teu agrado silencioso e fresco. Uma
folha de mim lança para o Norte, Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto
amei; Outra folha de mim lança para o Sul, Onde estão os mares que os
Navegadores abriram; Outra folha minha atira ao Ocidente, Onde arde ao
rubro tudo o que talvez seja o Futuro, Que eu sem conhecer adoro; E a
outra, as outras, o resto de mim Atira ao Oriente, Ao Oriente donde vem
tudo, o dia e a fé, Ao Oriente pomposo e fanático e quente, Ao Oriente
excessivo que eu nunca verei, Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos, Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva, Onde Deus
talvez exista realmente e mandando tudo...
Vem sobre os mares, Sobre
os mares maiores, Sobre os mares sem horizontes precisos, Vem e passa a
mão pelo dorso da fera, E acalma-o misteriosamente, Ó domadora hipnótica
das coisas que se agitam muito!
Vem, cuidadosa, Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste À cabeceira dos
deuses das fés já perdidas, E que viste nascer Jeová e Júpiter, E
sorriste porque tudo te é falso e inútil.
Vem, Noite silenciosa e
extática, Vem envolver na noite manto branco O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve, Tranquilamente com um gesto
materno afagando. Com as estrelas luzindo nas tuas mãos E a lua máscara
misteriosa sobre a tua face. Todos os sons soam de outra maneira Quando
tu vens. Quando tu entras baixam todas as vozes, Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste, Senão de repente, vendo que tudo se
recolhe, Que tudo perde as arestas e as cores, E que no alto céu ainda
claramente azul Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que
vem,
A lua começa a ser real.
(O texto completo vc encontra em:http://www.revista.agulha.nom.br/facam03.html )
Álvaro de Campos, in Fernando Pessoa, Poesia dos Outros Eus, Casais de Mem Martins, Rio de Mouro, Círculo de Leitores e Richard Zenith, 2007
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