O Globo
O jogo do bicho surgiu no Rio de Janeiro em 1893. A criação da loteria
popular mais famosa do Brasil se deve ao complicado contexto político daqueles
tempos. A República, recentemente proclamada, tentava sepultar os resquícios da
Monarquia derrubada — e desse quiproquó entre os adeptos dos regimes surgiu o
jogo. Explico.
Nos tempos da Monarquia, o Barão de Drummond, eminência política do Império e
amigo da família real, era fundador e proprietário do Jardim Zoológico do Rio de
Janeiro — que então funcionava em Vila Isabel.
A manutenção da bicharada era feita, evidentemente, com uma generosa
subvenção mensal do governo, suficiente, diziam as línguas ferinas dos inimigos
do Barão, para alimentar toda a fauna amazônica por pelo menos dez anos.
Quando a República foi proclamada, o velho Barão perdeu o prestígio que
tinha. Perdeu, também, a mamata que lhe permitia, segundo o peculiar humor
carioca, alimentar o elefante com caviar, dar champanhe francesa ao macaco e
contratar manicure para o pavão.
Sem o auxílio do governo, o nosso Barão cogitou, em protesto, soltar os
bichos na Rua do Ouvidor — o que, admitamos, seria espetacular — e fechar em
definitivo o zoológico do Rio.
Foi aí que um mexicano, Manuel Ismael Zevada, que morava no Rio e era fã do
zoológico, sugeriu a criação de uma loteria que permitisse a manutenção do
estabelecimento. O Barão ficou entusiasmado com a ideia.
O frequentador que comprasse um ingresso de mil réis para o Zoo ganharia
vinte mil réis se o animal desenhado no bilhete de entrada fosse o mesmo que
seria exibido em um quadro horas depois. O Barão mandou pintar vinte e cinco
animais e, a cada dia, um quadro subia com a imagem do bicho vitorioso.
Caríssimos, se bobear essa foi a ideia mais bem-sucedida da história do
Brasil. Multidões iam ao zoológico com a única finalidade de comprar os
ingressos e aguardar o sorteio do fim de tarde.
Em pouco tempo, o jogo do bicho tornou-se um hábito da cidade, como os
passeios na Rua do Ouvidor, a parada no botequim, as regatas na Lagoa e o fim de
semana em Paquetá. Coisa séria.
A República, que detestava o Barão, proibiu, depois de algum tempo, o jogo no
zoológico. Era tarde demais.
Popularizado, o jogo espalhou-se pelas ruas, com centenas de apontadores
vendendo ao povo os bilhetes com animais dadivosos. Daí para tornar-se uma mania
nacional, foi um pulo. O jogo do bicho deu samba — com trocadilho.
Contei rapidamente a história da criação do jogo para constatar o seguinte: a
situação atual do zoológico do Rio de Janeiro não parece ser muito diferente
daqueles tempos bicudos do velho Barão de Drummond.
Dia destes, o próprio O GLOBO veio com uma reportagem chamando atenção para o
desleixo a que o jardim está entregue em tempos recentes. Enquanto a loteria
popular prosperou e virou uma espécie de instituição nacional, o zoológico não
teve a mesma sorte.
O jogo, que a rigor foi criado apenas para tirar o zoológico da situação de
abandono e com uma inocência digna das histórias de Polyana, a moça, chegou
longe demais. Vejam, por exemplo, as atuais peripécias republicanas do bicheiro
Carlinhos Cachoeira (curiosamente chamado por alguns da mídia de “empresário da
contravenção”).
A inocente loteria popular ganhou asas e se transformou em uma complexa
organização criminosa, com tentáculos inimagináveis que envolvem até mesmo
cândidas vestais de ternos e togas do moralismo tupiniquim.
Deixo aqui a minha sugestão: já que o poder público aparentemente não dá
pelota para a bicharada, confisquem as fortunas que o crime organizado amealhou
em aparente conluio com os bacanas e poderosos da República.
Separem um pouquinho da grana tungada e, por justiça histórica, destinem o
tutu ao carente Jardim Zoológico do Rio de Janeiro.
Uma parte do dinheiro do mafioso Cachoeira deve servir ao nobre destino de
alimentar cobras, leões, passarinhos e macacos que, afinal de contas, fazem a
alegria da criançada carioca em fins de semana.
A César o que é de César. Ou alguém aí sugere a criação de uma loteriazinha
inocente que pode salvar o zoológico carioca desse abandono? Não recomendo.
Luiz Antonio Simas é historiador
Fonte: Blog do NOBLAT.
Enviada por Flávio Lúcio
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