quinta-feira, 12 de abril de 2012

A ARTE DA RECONCILIACAO (Affonso Romano de Sant'Anna)

Você está esperando aqui um texto sobre “reconciliação amorosa”. A expectativa está certa, e eu chegarei lá. Porém, vamos com calma. Com calma porque o tema da “reconciliação”atravessa muitas atividades humanas e não se pode tratar disto aqui sem se tratar disto acolá.
Posso começar, por exemplo com uma espécie de parábola: dizem que na Grécia antiga quando uma pessoas hospedava outra, era comum, na despedida, elas fazerem um ritual. O hospedeiro partia uma tablete de barro em duas partes, dava um pedaço a quem partia e ficava com a outra parte. Assim, se um dia o viajante voltasse, para ser reconhecido, bastava trazer a metade que levou. As duas partes, enfim se completavam, se encaixavam. Isto era símbolo de reconhecimento, de recomeço da relação.
-Sabem como se chamava esse tablete de barro?
Anotem: símbolo. Símbolo, portanto, é reconhecimento. Pode-se fazer uma ilação a partir daí: a aliança que os casados ostentam nos dedos são um símbolo de união.
Aquela estorinha além de boa é simbólica, conquanto a gente às vezes não queira rever ou se assentar com os que um dia foram nossos íntimos. Em termos de relacões amorosas e eróticas, então, nem se fala. Tem gente que não queremos rever de modo algum. A experiência pode até ter sido traumatizante. Aí não há reconciliação possivel. A gente joga a outra parte do tablete fora, quer esquecer, não há reencaixe possível. O mesmo, é claro, vale para certas amizades. E como naquela canção de roda infantil a gente sai dizendo:
“o anel que que tu me destes era vidro e se quebrou,
o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou”
Quando as pessoas se casam ouvem do sacerdote aquela frase : “Aqueles que Deus uniu não os separem os homens. Mas o problema é saber se Deus uniu mesmo as referidas pessoas. Também se poderia dizer o contrário : o que natureza desnuniu não adianta reunir, não vai dar certo. Alguns pais (antigamente) quando os irmãos brigavam, mandavam parar a querela e faziam com que eles se abraçassem, e até se beijassem. Era uma forma forçada de conciliação.
Estou começando a falar da conciliação pelo avesso: casos em que é impossível reconciliar-se com uma pessoa. Impossível por várias razões. Às vezes ocorre aquilo que juridicamente se chama “erro essencial de pessoa”-coisa que se descobre às vezes na própria lua de mel. Tal descoberta pode também ocorrer muito depois e por várias razões: as pessoas foram se transformando cada qual numa direção diferente e, de repente, a ruptura: de íntimo o outro passa a estranho.
Há uma pergunta prévia nessa questão da “reconciliação”. Muitas pessoas não se reconciliaram nem consigo mesmas, como é que vão pretender se harmonizar com o outro? Lembram daquele verso do poeta português Sá de Miranda (1481-1556): “comigo me desavim”? É tão verdadeiro que tem até um blog a partir dele: http://leaoramos.blogspot.com.br/2009/03/comigo-me-desavim-nao-posso-viver.html.
Há algum tempo foi detetada a síndrome das pessoas que têm “paixões doentias”. E decorrente da repercussão do livro-“Mulheres que amam demais”(Robin Norwood), há 18 anos, no Brasil , criou-se o MADA (Mulheres que Amam Demais Anônimas). Pessoas que forçam conciliações impossiveis devem se tratar. E uma coisa e amor, outra o “pacto neurótico.”
A coisa é complicada. Por isto, Sócrates dizia: “O homem não coincide consigo mesmo”. Homem e mulher, é claro. Quem faz análise sabe disto. Portanto, reconciliação- no melhor sentido- é coisa para pessoas que além de terem as chamadas “afinidades eletivas”, são maduras e civilizadas. Digo -civilizadas- porque há aí o aspecto político e social. Sociedades fraturadas por ideologias políticas e religiosas podem se reconciliar, tentando superar o passado de conflitos. Os países que conheceram ditaduras sabem que só podem ingressar no diálogo democrático através de um amadurecimento do conjunto. O indivíduo (ou a sociedade) quando parte para reconciliação entende que está abrindo mão do egocentrismo e aprendendo a ver o outro, o diferente. Ver o outro é uma coisa rara, extraordinária. A democracia pressupõe isto.
Hoje até na TV existe o “conciliador”, cujo papel é tentar ao máximo a aproximação entre os que se opõem. Ele tenta resolver problemas econômicos e até conjugais. O fato que este personagem existe é um avanço da civilidade. Em organizacões tribais os mais velhos, o shaman (ou o sacerdote) faz o papel dos conciliador e administra até a separação quando inevitável. Mas num universo primitive e bárbaro os litigantes resolvem as pendengas com guerra e sangue. Sentar-se à mesa para negociar foi uma evolução que levou séculos para ocorrer. Umberto Eco brincando diz que as galinhas levaram séculos para aprenderem a atravessar uma estrada. Muita galinha deve ter morrido nessa tentativa.
Este assunto, finalmente, não pode ser tratado sem uma alusão ao mito do andrógino.E assim, voltando à Grécia, arredondo o pensamento incial. Digo –arredondo- primeiro porque o círculo é sinônimo da harmonia, da ausência de arestas. E uso essa imagem porque, segundo a lenda, antigamente os humanos eram seres redondos que tinham dentro de si os elementos masculinos e femininos. Eram perfeitos, bastavam-se a si mesmos, não havia fratura no indivíduo. No entanto, como punição foram separados, partidos em dois. E como cada parte permanecesse inconsolável, perambulando sem destino, definhando, com saudade da outra parte complementar, os deuses, temendo a extinção da espécie, permitiram que eles se encontrassem atraves do sexo e do amor. Ocorreu o reencontro, a harmonização mítica.
Essa reconciliação dos contrários e diferentes é o desafio que atravessa a esfera pessoal, social e mística. Vivemos buscando a unidade perdida.
(revista LOLA- ABRIL, 2012)

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