João Pombo Barile
O teólogo Leonardo Boff completa hoje 70 anos de idade. Para comemorar a data, a editora da UFMG e Fundação Perseu Abramo acabam de lançar, pela coleção Intelectuais do Brasil, o volume "Leituras Críticas sobre Leonardo Boff" (R$ 36). No volume dedicado ao pensamento de Boff, nomes como Juarez Guimarães, João Batista Libanio, Patrus Ananias e Juan José Tamayo analisam a obra de um dos mais importantes pensadores dos últimos 50 anos.
Colunista do jornal "O TEMPO", Boff conversou com exclusividade com o Magazine. Na entrevista, ele fala entre outros assuntos, da Teologia da Libertação, de sua relação com o atual papa Bento XVI e dos rumos do mundo contemporâneo.
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O senhor certa vez afirmou: "Fato curioso; a Teologia da Libertação nasceu simultaneamente em vários países da América Latina, sem que houvesse um contato dos vários teólogos entre si. Como se o Weltgeist hegeliano nos tivesse tomado e irrompesse na forma de um discurso articulado. Nunca ouvira falar em Gustavo Gutiérrez". Gostaria de começarmos a entrevista por ai. Poderia lembrar aqueles anos em que o senhor formulou a Teologia da Libertação?
R - Todas as diferentes fases de minha teologia correspondem a crises intelectuais pelas quais passei. Assim entrou na minha vida a teologia da libertação. Eu voltei da Europa em fevereiro de 1970. Em julho fui pregar retiro a padres e freiras que trabalhavam no coração da floresta amazônica. Comecei minhas palestras, quatro por dia, apresentando os vários temas teológicos dentro do marco teórico da teologia progressista européia. Falava do Jesus da história e do Cristo da fé, da relação entre fé e secularização, como entender a Igreja dentro do mundo moderno da tecno-ciência etc. Mas eu percebi nos olhos dos ouvintes que as palavras não chegavam a eles. Até que alguém perguntou: como vou anunciar a ressureição de Cristo a indigenas que estão sendo exterminados por seringueiros? Como falar da mensagem cristã aos ribeirinhos que estão sendo afetados pelos materiais pesados dos garimpos que matam os peixes tiram o sustento deles? Como viver a fé cristã num mundo de pobres e miseráveis como nós do Brasil e da América Latina? Me dei conta então de que devia mudar de teologia, partir das questões deles. Partir das opressões para chegar à libertação. Foi assim que ao voltar a Petrópolis e ao retomar as aulas em agosto, lecionei a doutrina sobre Cristo numa perspectiva de libertação. Dai nasceu no final do ano o livro "Jesus Cristo Libertador". E nascia aqui entre nós a Teologia da Libertação. E tive que me esconder por 10 dias porque os órgãos de repressão me buscavam pois a palavra "libertação" era oficialmente probida.
Em 1970, o senhor voltou da Alemanha depois de ter concluído seu doutorado segundo o senhor "sob os auspícios do teólogo Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento XVI". Gostaria, se possível, que o senhor falasse um pouco desta relação entre a sua obra e o teólogo Ratzinger. Alguns teólogos, apontam Ratzinger como um dos teóricos mais importantes para responder a Teologia da Libertação. Poderia falar um pouco disto?
R - Nunca fui aluno direto de J. Ratzinger. Ouvi muitas palestras dele quando estudava em Munique. Nelas fazia criticas ao centralismo romano e e a rigidez doutrinária da teologia oficial. Somente a partir de 1969 me aproxmei dele por ocasião da publicação da minha tese. Ela era muito grande, quase 600 páginas e não achava editor. O prof. Ratzinger leu e fez grandes elogios a ela a ponto de por iniciativa própria arranjou uma editora e disponibilizou, acho de alguma fundação, cerca de 14 mil marcos para que pudesse ser publicada. Depois tive encontros esporádicos em Roma e na Alemanha. Certa vez na fila de cumprimentos ao Papa João Paulo ele me viu, tirou-me da fila e me apresentou pessoalmente ao Papa com palavras elogiosas. Foi ai que o Papa disse que estava se preparando para vir ao Brasil - isso foi em 1979. O papa me disse: "Estou lendo um livro de você, devagar, devagar". É que estava treinando seu português. Depois tive que encontrá-lo por ocasião da inquirição nos espaços da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o meu livro "Igreja: carisma e poder". Devo dizer que ele sempre foi extremamente gentil. Mesmo fazendo críticas a certas posições teológicas minhas, quando interrogado pelos jornalistas, sempre teve palavras antes elogiosas que críticas, chegando a dizer em Bolonha que eu era um homem piedoso e inteligente e que, um dia, iria reencontrar meu caminho de fidelidade doutrinal à cátedra de Pedro. Os dois documentos que escreveu sobre a Teologia da Libertação, um negativo e outro positivo, no meu modo de ver nunca revelaram que tivesse entendido no fundo o que estava em jogo com a Teologia da Libertação. Mais que uma reflexão teórica é uma prática de amor e de solidariedade com o destino trágico dos pobres que na América Latina são simultaneamente oprimidos e cristãos. Portanto, algo que nasce profundamente da experiência cristã. A nossa questão era e continua sendo: pode a fé cristã que está no povo ser mais do que mera resignação e unicamente resistência e fazer-se uma inspiração para a indignação e para a libertação? Nós cremos que a segunda possibilidade é a mais adequada e verdadeira pois está na herança de Jesus que não aceitou o mundo como estava e teve uma atuação libertadora. Não foi em vão que morreu na cruz e não de velho na cama, cercado de disciípulos. E nós o fazíamos a partir da prática de Jesus e não do marxismo. Dizer o contrário é caluniar a maioria dos teólogos que dedicaram o melhor de suas vidas e alguns foram até martirizados em nome desta opção evangélica. O que mais me dói é que irmãos persigam outros irmãos exatamente por uma causa que nos deveria unir: a paixão por Deus unida à paixão pelos últimos da fila, os condenados e ofendidos da Terra.
Seus textos sempre serviram de base para as novas gerações de teólogos latino-americanos. Senão vejamos: o senhor publicou "Jesus Cristo Libertador" em 1972. A partir dai, seus textos começaram a servirem de base para novas gerações de teólogos latino-americanos. Em 1984, foi punido a um "silêncio obsequioso" e proibido de se manifestar publicamente, por um ano por causa do seu livro "Igreja, Carisma e Poder" (1981).Em 1992, voltou a ser condenado e resolveu então deixar a Ordem dos Frades Menores. Poderia contar um pouco de como foi esta decisão de deixar a Igreja?
R - Eu nunca deixei a Igreja. Deixei de exercer uma função, a de padre, dentro da Igreja. Continuei e continuo dentro da Igreja e fazendo teologia como antes. Ocorre que na vida de um teólogo podem ocorrer situações em que suas opiniões teológicas nem sempre coincidem com as opiniões oficiais do magistério. Pertence à tarefa do teólogo pensar a realidade a partir da fé e não simplesmente repetir a doutrina estabelecida. Isso é cômodo e até preguiçoso. O teólogo deve avançar e atualizar a mensagem face aos desafios atuais para que ela continue boa notícia. Ela não é boa notícia simplesmente pelo fato de ser conservada e recitada. Ela deve trazer luz para a vida, partindo das situações concretas. No fundo, o evangelho deve ser uma coisa boa e não um pesadelo para a humanidade. Eu tentei fazer isso e continuo fazê-lo pois vivemos apenas uma única vez neste mundo e deve valer a pena viver e pensar aquilo que achamos o mais adequado para o momento atual. Caso contrário, fazemos do cristianismo um recipiente de águas mortas e não uma fonte de águas vivas. Curiosamente quase todos os teólogos que foram um dia condenados, depois, mais tarde, quando nem estavam mais vivos, foram reabilitados. E a instituição procura então se apropiar das contribuições que trouxeram, fazendo-as suas quando, na verdade, ela as condenou. Quando tivermos a devida distância histórica e os conflitos tiverem perdido sua atualidade então veremos que no céu de nossa fé brilharão estrelas como Dom Pedro Casaldáliga, Dom Heldér Câmara, Gustavo Gutierrez, Ivone Gebara, José Comblin, João Batista Libanio só para falar dos nossos que foram colocados sob suspeita e até condenados. Eles serão considerados os testemunhos qualificados da fé nas turbilências dramáticas de nosso tempo. Gostaria de estar entre eles. Mas isso pertence à história e não ao meu desejo.
Uma das mais interessantes características de sua obra é que o senhor consegue ser profundo e, ao mesmo tempo, ser um fenômeno de vendas. É realmente popular, pelo menos para os que tem acesso ao livro no Brasil. Qual o segredo de conseguir ser profundo e ao mesmo tempo tão claro?
R - Eu escrevo para mim mesmo, para resolver as questões que eu sinto e com elas padeço. Ocorre que quando sintonizamos com o nosso tempo, estas questões doloridas não são apenas pessoais. São de toda uma geração ou da condição humana vivida nas atuais situações. Escrevo, claro, porque devo entender eu mesmo as questões e suas eventuais respostas. Um autor só é lido quando consegue estabelecer um elo com o profundo das pessoas. Quando as pessoas se sentem sintonizadas com ele e exclamam: ele diz aquilo que eu pressentia e gostaria tambem de ter dito. Fazer isso não constitui nenhum segredo. Basta ser sincero consigo mesmo e honrar a realidade assim como ela se apresenta e não escamoteá-la, edulçorá-la ou distorcê-la.
O senhor se formou em Petrópolis e estudou inclusive com Frei Boaventura Kloppenburg na década de 60. Entrevistei, certa vez, o falecido Padre Vaz que, por estes anos, morava e dava aula em Petrópolis. Ele então me contou a sua influência na Ação Popular (AP). Primeiro gostaria de saber se o senhor teve aula com ele. E se ele algum dia, os senhores conversaram sobre suas obras respectivas.
R - Eu nunca pertenci à AP. No tempo em que ela era mais atuante eu estava estudando na Europa. Com referência ao padre Vaz devo dizer de minha profunda admiração e reconhecimento por sua lucidez e alta qualidade intelectual. Estimo mesmo que é a nossa cabeça filosófica mais brilhante. Não só dos nossos dias mas de nossa história. Não temos, lamentavelmente, uma tradição filosófica consistente. Ele sobressai como uma palmeira real soberana por sobre a floresta de nossos pensadores. Dominava toda a tradição a começar pelos gregos, passando pelos medievais e culminando em Hegel e os modernos. Sua reflexão é feita em cima das fontes. Ele se mede com os gigantes e não com os comentaristas, embora os conhecesse e os citasse nos rodapés. Mas discute com Aristóteles em cima dos textos gregos da metafísica ou com Hegel em sua "Fenomenologia do Espírito" em alemão. Se ler é sempre reler e se pensar é sempre interpretar, então Vaz é um mestre do pensamento, da releitura e da interpretação atualizadora. Vale revisitá-lo com frequência. Sempre se aprende com ele. Apenas lhe faço uma pequena restrição. Ele se movia com grande desenvoltura dentro do paradigma grego e ocidental. Mas quem vem do conflito das interpretações e da emergência de novos paradigmas, como eu pretendo vir, se sente um pouco sem ar. Pode-se ir além do canon ocidental. Temos muito que aprender de outras formas de aproximação filosófica da realidade. Mas isso em nada diminui minha admiração pelo mestre, apenas constato que nenhum pensamento diz tudo e que toda reflexão tem limites embora com grande alcance como a extraordinária aventura intelectual dos gregos.
Qual foi a importância que Dom Hélder Câmara teve para sua vida?
R - Dom Helder foi o verdadeiro fundador da Teologia da Libertação. Foi ele que, entre nós, por primeiro, deu centralidade aos pobres. Foi ele que fez as primeiras críticas ao modelo desenvolvimentista que era um desenvolvimento do subdesenvolvimento. Foi ele que disse nos meados dos anos 60 de século passado, numa reunião dos bispos latino-americanos no Uruguai que deveríamos buscar a libertação integral. Os profetas e ele era um dos grandes, sempre se antecipam aos teólgos. Além de profeta, era um bom pastor e um fino poeta. Sempre guardarei com carinho o bilhete que mandou entregar a mim e a meu irmão também teólogo, Clodovis:" Quando de madrugada levanto para rezar e penso nos irmãos Boff então canto e danço". Só esse louvor me santifica ou pelo menos faz Deus ter misericórdia de todos os erros que tiver cometido no campo da teologia. Guardo com infinita ternura a última frase que me disse uma semana antes de partir para o Pai: "Nós fomos sempre amigos, muito amigos".
Gostaria que o senhor falasse um pouco de uma de suas maiores preocupações atuais: a Ecologia. Nos seus artigos para O TEMPO o senhor sempre toca neste ponto.
R - Já nos anos 80 do século passado me dei conta de que a Teologia da Libertação não devieria escutar apenas o grito dos pobres, mas tambem o grito da Terra, dos animais, das florestas, das águas, pois estão sendo terrivelmente oprimidos e até exterminados. Só auscultando os dois gritos, a Teologia da Libertação seria integral. Dai nasceu o meu livro mais importante dos últimos tempos: "Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres". Hoje devemos tomar absolutamente a sério o que os cientistas nos revelaram: que não estamos indo ao encontro do aquecimento global senão que já estamos dentro dele e que não podemos parar a roda, apenas diminuir-lhe a velocidade. Este fato representa em termos ecológicos uma devastação, pois grande parte das espécies vivas não dispõe do tempo suficiente para adaptar-se e começarão a desparecer. Também milhões de seres humanos, dependendo de onde vivem, poderão estar ameaçados. E se nada fizermos a própria espécie humana corre risco de desaparecer. Então a opção-Terra é central. Se não salvarmos a Terra, liquidamos as bases que possibilitam qualquer outro projeto humano. Na verdade, o problema não é a Terra, pois ela pode continuar sem nós. Nós somos o meteoro rasante que pode prejudicar profundamente a biosfera e nos varrer deste planeta. Aqui se impõe uma mudança rápida nas formas de produção e de consumo, poupando os recursos escassos e repartindo-os com um mínimo de equidade entre os seres humanos e os demais seres da comunidade de vida. Temos pouco tempo e nos falta sabedoria. Podem ocorrer grandes dizimações. Mas creio que o instinto de vida é mais forte que a pulsão de morte. Acabaremos por sobreviver porque, feitos de pó estelar, nossa vocação é brilhar.
Nas últimas semanas o senhor tem escrito sobre a crise financeira internacional. O senhor está otimista com os rumos que a humanidade vai tomando? Esta crise vai mesmo ensinar ao ser humano alguma coisa?
R - Creio que chegamos a uma crise terminal. Quer dizer, assim como está, não podemos mais continuar. O paradigma que formou o Ocidente nos últimos quatro séculos e que foi globalizado não dispõe mais de virtualidades internas para oferecer uma solução aos problemas que ele mesmo criou. O veneno não pode ser o remédio. Muitos analistas já o disseram: ou mudamos ou vamos ao encontro da escuridão. Temo muito que os "cappi" do sistema e os donos do poder econômico e militar (em último termo é este que conta, quer dizer, a capacidade de matar e de pôr fim ao projeto planetário humano) não se advirtam da gravidade dos riscos e pensem que devemos incentivar mais do mesmo. A solução seria ter ainda mais capitalismo, mais mercado, mais competição e principalmente mais produção e mais consumo. Então vamos perceber que a Terra não aguenta mais esta voracidade. O limite do sistema é o limite da Terra que já foi superado em 30%. Estamos num impasse final. Somos obrigados a reinventar a economia, a política, a ética societária e uma espiriualidade que nos devolvam esperança e assim nos garantam um futuro para nós e para a Casa Comum, nossa velha e querida Mãe Terra.
'Estamos numa crise terminal'
O senhor chegou a ser elogiado por Bento XVI?
R - Mesmo fazendo críticas a certas posições teológicas minhas, quando interrogado pelos jornalistas, ele sempre teve palavras antes elogiosas que críticas. Certa vez, em Bolonha, ele disse que eu era um homem piedoso e inteligente e que, um dia, iria reencontrar meu caminho de fidelidade doutrinal à cátedra de Pedro. Os dois documentos que escreveu sobre a Teologia da Libertação, um negativo e outro positivo, no meu modo de ver, nunca revelaram que tivesse entendido no fundo o que estava em jogo com a minha tese. Mais que uma reflexão teórica é uma prática de amor e de solidariedade com o destino trágico dos pobres que na América Latina são simultaneamente oprimidos e cristãos. Portanto, algo que nasce profundamente da experiência cristã. A nossa questão era e continua sendo: pode a fé cristã que está no povo ser mais do que mera resignação e unicamente resistência e fazer-se uma inspiração para a indignação e para a libertação? Nós cremos que a segunda possibilidade é a mais adequada e verdadeira, pois está na herança de Jesus, que não aceitou o mundo como estava e teve uma atuação libertadora. Não foi em vão que morreu na cruz e não de velho na cama, cercado de discípulos. E nós o fazíamos a partir da prática de Jesus e não do marxismo. Dizer o contrário é caluniar a maioria dos teólogos que dedicaram o melhor de suas vidas e alguns foram até martirizados em nome dessa opção evangélica. O que mais me dói é que irmãos persigam outros irmãos exatamente por uma causa que nos deveria unir: a paixão por Deus unida à paixão pelos últimos da fila, os condenados e ofendidos da Terra.
Em 1984, o senhor foi punido a um "silêncio obsequioso" e proibido de se manifestar publicamente, por um ano por causa do seu livro "Igreja, Carisma e Poder". Em 1992, voltou a ser condenado e resolveu então deixar a Ordem dos Frades Menores. Poderia contar um pouco de como foi essa decisão de deixar a Igreja?
R - Eu nunca deixei a Igreja. Deixei de exercer uma função, a de padre, dentro da Igreja. Continuei e continuo dentro da Igreja e fazendo teologia como antes. Na vida de um teólogo podem ocorrer situações em que suas opiniões teológicas nem sempre coincidem com as opiniões oficiais do magistério. Pertence à tarefa do teólogo pensar a realidade a partir da fé e não simplesmente repetir a doutrina estabelecida. Isso é cômodo e até preguiçoso. O teólogo deve avançar e atualizar a mensagem face aos desafios atuais para que ela continue boa notícia. Ela não é boa notícia simplesmente pelo fato de ser conservada e recitada. Ela deve trazer luz para a vida, partindo das situações concretas. No fundo, o evangelho deve ser uma coisa boa e não um pesadelo para a humanidade. Eu tentei fazer isso e continuo a fazê-lo, pois vivemos apenas uma única vez neste mundo e deve valer a pena viver e pensar aquilo que achamos o mais adequado para o momento atual. Caso contrário, fazemos do cristianismo um recipiente de águas mortas e não uma fonte de águas vivas. Curiosamente quase todos os teólogos que foram um dia condenados, depois, mais tarde, quando nem estavam mais vivos, foram reabilitados. E a instituição procura então se apropriar das contribuições que trouxeram, fazendo-as suas quando, na verdade, ela as condenou. Quando tivermos a devida distância histórica e os conflitos tiverem perdido sua atualidade então veremos que no céu de nossa fé brilharão estrelas como dom Pedro Casaldáglia, dom Helder Câmara, Gustavo Gutierrez, Ivone Gebara, José Comblin, João Batista Libanio só para falar dos nossos que foram colocados sob suspeita e até condenados. Eles serão considerados os testemunhos qualificados da fé nas turbulências dramáticas de nosso tempo. Gostaria de estar entre eles. Mas isso pertence à História e não ao meu desejo.
Qual a importância de dom Hélder Câmara para sua vida?
R - Dom Hélder foi o verdadeiro fundador da Teologia da Libertação. Foi ele quem, entre nós, por primeiro, deu centralidade aos pobres. Foi ele quem fez as primeiras críticas ao modelo desenvolvimentista que era um desenvolvimento do subdesenvolvimento. Foi ele quem disse nos meados dos anos 60, numa reunião dos bispos latino-americanos no Uruguai, que deveríamos buscar a libertação integral. Os profetas, e ele era um dos grandes, sempre se antecipam aos teólogos. Além de profeta, era um bom pastor e um fino poeta. Sempre guardarei com carinho o bilhete que mandou entregar a mim e a meu irmão também teólogo, Clodovis: "Quando de madrugada levanto para rezar e penso nos irmãos Boff, então canto e danço". Só esse louvor me santifica ou pelo menos faz Deus ter misericórdia de todos os erros que tiver cometido no campo da teologia. Guardo com infinita ternura a última frase que me disse uma semana antes de partir para o Pai: "Nós fomos sempre amigos, muito amigos".
Sobre a atual crise financeira internacional. Como o senhor vê o futuro da humanidade?
R - Creio que chegamos a uma crise terminal. Quer dizer, assim como está, não podemos mais continuar. O paradigma que formou o Ocidente nos últimos quatro séculos e que foi globalizado não dispõe mais de virtualidades internas para oferecer uma solução aos problemas que ele mesmo criou. O veneno não pode ser o remédio. Muitos analistas já o disseram: ou mudamos ou vamos ao encontro da escuridão. Temo muito que os "cappi" do sistema e os donos do poder econômico e militar (em último termo é este que conta, quer dizer, a capacidade de matar e de pôr fim ao projeto planetário humano) não se advirtam da gravidade dos riscos e pensem que devemos incentivar mais do mesmo. A solução seria ter ainda mais capitalismo, mais mercado, mais competição e principalmente mais produção e mais consumo. A Terra não aguenta mais essa voracidade. O limite do sistema é o limite da Terra que já foi superado em 30%. Estamos num impasse final. Somos obrigados a reinventar a economia, a política, a ética societária e uma espiritualidade que nos devolvam esperança e assim nos garantam um futuro para nós e para a Casa Comum, nossa velha e querida Mãe Terra.
Publicado em: 14/12/2008
Fonte: http://www.otempo.com.br/otempo/noticias/?IdNoticia=98388
Publicado em: 14/12/2008
Fonte: http://www.otempo.com.br/otempo/noticias/?IdNoticia=98388
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