Mia Couto in SAVANA
(13.12.2003)
(13.12.2003)
Rico é quem possui meios de produção. Rico é quem gera dinheiro» dá emprego. Endinheirado é quem simplesmente tem dinheiro. Ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o dinheiro é que o tem a ele. A verdade é esta: são demasiado pobres os nossos “ricos”. Aquilo que têm, não detêm. Pior, aquilo que exibem como seu, é propriedade de outros. É produto de roubo e de negociatas. Não podem, porém, estes nossos endinheirados usufruir em tranquilidade de tudo quanto roubaram. Vivem na obsessão de poderem ser roubados.
Necessitariam de forças policiais à altura. Mas forças policiais à altura acabariam por os lançar a eles próprios na cadeia. Necessitariam de uma ordem social em que houvesse poucas razões para a criminalidade. Mas se eles enriqueceram foi graças a essa mesma desordem.O maior sonho dos nossos novos-ricos é, afinal, muito pequenito: um carro de luxo, umas efêmeras cintilâncias. Mas a luxuosa viatura não pode sonhar muito, sacudida pelos buracos das avenidas. O Mercedes e o BMW não podem fazer inteiro uso dos seus brilhos, ocupados que estão em se esquivar entre chapas muito convexos e estradas muito côncavas. A existência de estradas boas dependeria de outro tipo de riqueza Uma riqueza que servisse a cidade. E a riqueza dos nossos novos-ricos nasceu de um movimento contrário: do empobrecimento da cidade e da sociedade.
As casas de luxo dos nossos falsos ricos são menos para serem habitadas do que para serem vistas. Fizeram-se para os olhos de quem passa. Mas ao exibirem-se, assim, cheias de folhos e chibantices, acabam atraindo alheias cobiças. O fausto das residências chama grades, vedações electrificadas e guardas privados. Mas por mais guardas que tenham à porta, os nossos pobres-ricos não afastam o receio das invejas e dos feitiços que essas invejas convocam.Coitados dos novos ricos. São como a cerveja tirada à pressão. São feitos num instante mas a maior parte é só espuma. O que resta de verdadeiro é mais o copo que o conteúdo. Podiam criar gado ou vegetais. Mas não. Em vez disso, os nossos endinheirados feitos sob pressão criam amantes. Mas as amantes (e/ou os amantes) têm um grave inconveniente: necessitam ser sustentados com dispendiosos mimos. O maior inconveniente é ainda a ausência de garantia do produto. A amante de um pode ser, amanhã, amante de outro. O coração do criador de amantes não tem sossego: quem traiu sabe que pode ser traído.
Os nossos endinheirados-às-pressas não se sentem bem na sua própria pele. Sonham em ser americanos, sul-africanos. Aspiram ser outros, distantes da sua origem, da sua condição. E lá estão eles imitando os outros, assimilando os tiques dos verdadeiros ricos de lugares verdadeiramente ricos. Mas os nossos candidatos a homens de negócios não são capazes de resolver o mais simples dos dilemas: podem comprar aparências, mas não podem comprar o respeito e o afecto dos outros. Esses outros que os vêem passear-se nos mal-explicados luxos. Esses outros que reconhecem neles uma tradução de uma mentira. A nossa elite endinheirada não é uma elite: é uma falsificação, uma imitação apressada.
A luta de libertação nacional guiou-se por um princípio moral: não se pretendia substituir uma elite exploradora por outra, mesmo sendo de uma outra raça. Não se queria uma simples mudança de turno nos opressores. Estamos hoje no limiar de uma decisão: quem faremos jogar no combate pelo desenvolvimento? Serão estes que nos vão representar nesse relvado chamado “a luta pelo progresso”? Os nossos novos ricos (que nem sabem explicar a proveniência dos seus dinheiros) já se tomam a si mesmos como suplentes, ansiosos pelo seu turno na pilhagem do país.
São nacionais mas só na aparência. Porque estão prontos a serem moleques de outros, estrangeiros. Desde que lhes agitem com suficientes atractivos irão vendendo o pouco que nos resta. Alguns dos nossos endinheirados não se afastam muito dos miúdos que pedem para guardar carros. Os novos candidatos a poderosos pedem para ficar a guardar o país. A comunidade doadora pode ir às compras ou almoçar à vontade que eles ficam a tomar conta da nação. Os nossos ricos dão uma imagem infantil de quem somos. Parecem criancas que entraram numa loja de rebuçados. Derretem-se perante o fascínio de uns bens de ostentação. Servem-se do erário público como se fosse a sua panela pessoal. Envergonha-nos a sua arrogância, a sua falta de cultura, o seu desprezo pelo povo, a sua atitude elitista para com a pobreza. Como eu sonhava que Moçambique tivesse ricos de riqueza verdadeira e de proveniência limpa! Ricos que gostassem do seu povo e defendessem o seu país. Ricos que criassem riqueza. Que criassem emprego e desenvolvessem a economia. Que respeitassem as regras do jogo. Numa palavra, ricos que nos enriquecessem. Os índios norte-americanos que sobreviveram ao massacre da colonização operaram uma espécie de suicídio póstumo: entregaram-se à bebida até dissolverem a dignidade dos seus antepassados. No nosso caso, o dinheiro pode ser essa fatal bebida. Uma parte da nossa elite está pronta para realizar esse suicídio histórico. Que se matem sozinhos. Não nos arrastem a nós e ao país inteiro nesse afundamento.
Fonte: http://www.macua.org/miacouto/index.html
Mia Couto, natural da Beira, Moçambique, onde nasceu em 1955, é o mais traduzido escritor moçambicano e uma referência da literatura contemporânea do país. Com um percurso singular, Mia cursou Medicina, aderiu à FRELIMO, foi diretor da Agência de Informação de Moçambique e, hoje, como diz, é biólogo de dia e escreve à noite.
Descendente de uma família de emigrantes portugueses - o pai, igualmente ex-jornalista, é o responsável pela editora moçambicana Nadjira, António Emílio Leite Couto, Mia, estreou-se na poesia aos 14 anos, publicando os seus poemas no Notícias da Beira. Em 1974, e já em Lourenço Marques, atual Maputo, para onde se mudara para cursar Medicina, opta pelo jornalismo, vindo depois a ocupar cargos de direção na Agência de Informação de Moçambique, na revista Tempo e no jornal Notícias.
Como tantos jovens de origem portuguesa, aproveitou a queda do regime colonial português para se empenhar no futuro do novo país e aderiu à FRELIMO, então um partido marxista-leninista e no poder desde a independência, em 1975.
"No dia da independência de Moçambique eu tinha 19 anos. Alimentava então a expectativa de ver subir num mastro uma bandeira para o meu país. Eu acreditava assim que o sonho de um povo se poderia traduzir numa simples bandeira. Em 1975 eu era jornalista, o mundo era a minha igreja e os homens a minha religião. E tudo era ainda possível", escreveu em 2005, quando o seu país comemorou 30 anos.
Hoje, o seu empenho continua visível, assim como nas freqüentes interrogações que faz sobre o seu país: "No passado, o futuro era melhor?", perguntou-se em 2006. "O nosso passado desde 1975 é um futuro. Uma semente que está dando árvore. Queremos ter direito à sombra dessa árvore", promete.
(...) A carreira literária de Mia Couto começou por cima - o primeiro romance, "Terra Sonâmbula" (1992), é considerado um dos 12 melhores livros africanos de sempre, e desde então a sua obra já foi traduzida em inúmeras línguas.
Mas é em Portugal, onde já vendeu mais de 400 mil livros, que a sua obra tem maior projeção, fato que alimenta críticas corrosivas por parte de alguns jovens autores moçambicanos, que o acusam de escrever ao gosto do mercado português. "Pela primeira vez, um escritor africano branco fez- me ver através de olhos pretos africanos", contrapôs o crítico norte-americano Jess Berrett, a propósito do lançamento da edição inglesa de "O Último Vôo do Flamingo" (2005).
"Escritor da Terra", como tantas vezes o classificam, Mia Couto não foge à associação com a rica tradição literária humanista moçambicana, feita de nomes como José Craveirinha (Premio Pessoa em 1991), Rui Knopfli, Vergílio de Lemos, Rui Nogar ou Luís Bernardo Honwana.
Fonte: http://www.rtp.pt/index.php?article=278568&visual=16
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