quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Porque é assim

 
Apaixonar não tem particípio decente, descura o pretérito, escarnece o futuro e carece de gerúndio. Aliás, apaixono-me, apaixonas-te, apaixona-se e parou. Tudo no presente do singular. Ninguém se apaixona no plural: nós os dois nunca nos apaixonámos ou nos apaixonaremos. Exortar paixão padece de uma singularidade muito própria e presente, jamais, a cada tempo, correspondida ou subordinada. Paixão vem de um só canto, não é transmissível, não segue para além de mim, de ti, dele ou dela. É coisa de eremita, de hedonista estóico, de um único ser. É construção solitária. Faz-se e desfaz-se no âmago de cada um sem necessidade de consulta prévia. Devidamente cuidada e alimentada é produto da sua própria insistência, não está condicionada pela empatia ou antipatia alheia. Tudo o que se lhe reflecte detém-se impotente: é um outro mundo, à medida dos nossos anseios e acometimentos, que se faz inalcançável. E quando se esboroa, será sempre porque a ela se segue outra. Mais espectacular e repleta de desfaçatez. Porquê? Porque é assim.

Amor é outra coisa, é o pote cerrado no fim do arco-íris. É vírus estranho e externo, vem lá do norte, vem quando dele já estamos desprecavidos e esquecidos. Amar conjuga-se de todas as formas e feitios, estira-se regalado pelo gerúndio, espraia-se pelo plural, percorre todos os tempos mais-que-perfeito e, brioso, avança para o imperativo. É sismo interno à pele e às entranhas; libertação incontrolável de energias opostas que nos predispõe bovinos contemplativos. É epicurista de berço, mas é sobre a dor que mais e melhor se alonga, mais e melhor se define extrínseco, surgindo como forma maior que reabre o Divino, onde o culto é lúbrico a nós dois, ao dístico das nossas identidades, tornado uno e indivisível. Como qualquer ser inerte sem hospedeiro, não passa de prosa ou de vã filosofia crivada pelos tempos em papiros empoeirados já esquecidos, mas, como qualquer ácido nucleico, encontrando quentura e frequência cardíaca, se propaga em surtos ciclicamente pandémicos, exalando torrencial harmonia e felicidade.

 Por isso mesmo, paixão pode ser só problema meu, mas amor será sempre um problema nosso.
 
(Paulo Abreu e Lima)
 
 

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