Apaixonar não tem particípio decente, descura o pretérito, escarnece o futuro e carece de gerúndio. Aliás, apaixono-me, apaixonas-te, apaixona-se
e parou. Tudo no presente do singular. Ninguém se apaixona no plural:
nós os dois nunca nos apaixonámos ou nos apaixonaremos. Exortar paixão
padece de uma singularidade muito própria e presente, jamais, a cada
tempo, correspondida ou subordinada.
Paixão vem de um só canto, não é transmissível, não segue para além de
mim, de ti, dele ou dela. É coisa de eremita, de hedonista estóico, de
um único ser. É construção solitária. Faz-se e desfaz-se no âmago de
cada um sem necessidade de consulta prévia. Devidamente cuidada e
alimentada é produto da sua própria insistência, não está condicionada
pela empatia ou antipatia alheia. Tudo o que se lhe reflecte detém-se
impotente: é um outro mundo, à medida dos nossos anseios e
acometimentos, que se faz inalcançável. E quando se esboroa, será sempre
porque a ela se segue outra. Mais espectacular e repleta de desfaçatez.
Porquê? Porque é assim.
Amor é outra coisa, é o pote cerrado no fim do arco-íris. É vírus
estranho e externo, vem lá do norte, vem quando dele já estamos
desprecavidos e esquecidos.
Amar conjuga-se de todas as formas e feitios, estira-se regalado pelo
gerúndio, espraia-se pelo plural, percorre todos os tempos
mais-que-perfeito e, brioso, avança para o imperativo. É sismo interno à
pele e às entranhas; libertação incontrolável de energias opostas que
nos predispõe bovinos contemplativos. É epicurista de berço, mas é sobre
a dor que mais e melhor se alonga, mais e melhor se define extrínseco,
surgindo como forma maior que reabre o Divino, onde o culto é lúbrico a
nós dois, ao dístico das nossas identidades, tornado uno e indivisível.
Como qualquer ser inerte sem hospedeiro, não passa de prosa ou de vã
filosofia crivada pelos tempos em papiros empoeirados já esquecidos,
mas, como qualquer ácido nucleico, encontrando quentura e frequência
cardíaca, se propaga em surtos ciclicamente pandémicos, exalando
torrencial harmonia e felicidade.
Por isso mesmo, paixão pode ser só problema meu, mas amor será sempre um problema nosso.
(Paulo Abreu e Lima)
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