(Contardo Caligaris)
Anos atrás, decidi que, salvo necessidade absoluta, em voo
internacional, eu não viajaria mais de classe econômica. Quando não
posso pagar pela executiva, é simples: não viajo.
A passagem de executiva dá direito ao uso de uma sala de espera
confortável, que no Brasil é chamada de sala VIP (sigla de "very
important person", pessoa muito importante). Há um quê de idiota na
ideia de que alguém se torne importante por pagar uma passagem mais cara
que os outros.
Mas o que me interessa agora é o fato de que os passageiros de classe
executiva, confortavelmente instalados na sala VIP, poderiam esperar até
o fim do embarque da classe econômica; aí eles iriam ao portão já
esvaziado e subiriam no avião.
Não é o que acontece. Convidados a embarcar antes dos outros, eles
entram no avião sob o olhar dos passageiros de classe econômica e ocupam
seus assentos espaçosos, situados na parte da frente da aeronave, de
forma que os passageiros de econômica, a caminho de suas
poltronas-suplício, são obrigados a contemplar o privilégio dos que já
estão instalados na executiva.
Por que essa irracionalidade? É que o passageiro de executiva não compra
apenas um tratamento mais humano e um espaço compatível com as formas
médias de um corpo: ele compra também a experiência (desejável,
aparentemente) de ser objeto da inveja dos outros.
Numa recente viagem à Europa, eu já estava instalado na executiva,
tomando suco e lendo um livro quando uma senhora chinesa, a caminho de
seu lugar na econômica, passou do meu lado e espirrou molhada e
barulhentamente em cima da minha cabeça. Por sorte, não era época de
gripe aviária. Mas é isto: a inveja é uma mistura de idealização, amor e
ódio.
Circulando de madrugada, passo pela entrada de uma balada. Há uma longa
fila de espera, há seguranças imponentes e há uma "hostess" que escolhe
quem pode entrar. Em Nova York, entram até desconhecidos, se forem
bizarros, interessantes e decorativos. Em São Paulo, parece que a lista
de clientes VIPs é soberana. Os outros esperam noite adentro, tentando
ganhar a simpatia da "hostess". Vale a pena? O que acontecerá se eles
forem admitidos? Pois é, será uma noite sensacional: eles tirarão fotos
que postarão no Facebook e no Instagram.
Em geral, com as fotos, eles esperam receber a mesma inveja que eles
destinam aos VIPs: por isso, exibirão poses parecidas com o que eles
imaginam que os VIPs (os que entraram na balada há tempos) fazem quando
se divertem (loucamente).
E o que fazem os VIPs? Pois é, essa é a parte mais estranha: os VIPs
imitam as poses dos que os invejam e imitam, pois, eles constatam, essas
são as poses que mais suscitam inveja.
De fato, na balada, muitos, VIPs e mortais comuns, apenas esperam a
ressaca de amanhã. Mas, no círculo vicioso da inveja, a experiência
efetiva é irrelevante; não é com tal ou tal outra vida e história
concretas que se sonha: sonha-se ser o que os outros sonham.
A inveja é, por assim dizer, uma emoção abstrata: o privilégio não
precisa dar acesso a uma fruição especial da vida (sensual ou
espiritual, tanto faz), ele só precisa suscitar inveja. Ou seja,
privilégio não é o que faço ou o que acontece de extraordinário em minha
vida, mas o olhar invejoso dos outros.
Nesse mundo, em que a inveja é um regulador social, as aparências são
decisivas porque elas comandam a inveja dos outros. Por exemplo, o que
conta não é "ser feliz", mas parecer invejavelmente feliz.
Nesse mundo, o ter é mais importante do que o ser apenas porque, à
diferença do ser, o ter pode ser mostrado facilmente. É simples mostrar o
brilho de roupas e bugiganga aos olhos dos invejosos. Complicado seria
lhes mostrar vestígios de vida interior e pedir que nos invejem por
isso.
O Facebook é o instrumento perfeito para um mundo em que a inveja é um
regulador social. Nele, quase todos mentem, mas circula uma verdade de
nossa cultura: o valor social de cada um se confunde com a inveja que
ele consegue suscitar.
Comecei a escrever essa coluna depois de assistir a "Bling Ring: A
Gangue de Hollywood", de Sofia Coppola (uma tradução por "Bling Ring"
seria "A Turma do Deslumbre"). A não ser que outro tema se imponha com
força, voltarei a falar sobre o filme. Mas digo já: saí do cinema muito
feliz por não ter levado nenhum adolescente comigo (respeitando a
indicação para acima de 16 anos).
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