Antropóloga se debruça sobre o discurso que constrói uma sexualidade gratificante na velhice
MÁRCIO FERRARI
Com o aumento da longevidade, a velhice está se tornando a fase
mais longa da vida. Contada geralmente a partir dos 60 anos de idade –
mas não raro a partir dos 50 –, às vezes corresponde a quase metade da
existência de uma pessoa. Atualmente já se pode falar não de uma única
velhice, mas de várias, dependendo da faixa etária e das condições
sociais e individuais do idoso. Por ser o prolongamento da expectativa
de vida um fenômeno recente e veloz, as políticas públicas, as
concepções médicas e as de senso comum sobre a velhice se sucedem, se
entrelaçam e muitas vezes se confundem.
As variações e contradições dos discursos gerontológicos das
últimas décadas são o tema do estudo Velhice, violência e sexualidade,
da professora Guita Grin Debert, do Departamento de Antropologia da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O trabalho se insere num
conjunto de estudos que a pesquisadora vem desenvolvendo ao longo de sua
carreira acadêmica, cujas conclusões mais recentes se encontram no
campo da sexualidade – ou, mais precisamente, no processo de “erotização
da velhice” verificado nas últimas décadas.
O estudo foi feito com base na análise de documentos e
pronunciamentos oficiais, de textos publicados na imprensa e da
literatura de autoajuda, além de dados etnográficos obtidos em espaços
de socialização de pessoas idosas. O que se percebe, segundo Guita, é
uma mudança marcante da década de 1970 para cá. Evoluiu-se de uma
concepção em que a velhice é caracterizada como uma fase de “decadência
física e perda de papéis sociais”, na qual a vivência sexual
praticamente se extingue, para outra em que uma sexualidade ativa e
gratificante é pré-requisito para uma vida saudável e feliz.
É quando surge o conceito de “terceira idade” e passa a predominar a
ideia de que o sexo “é quase uma obrigação” para os idosos. Trata-se do
que a pesquisadora chama, tomando de empréstimo uma expressão criada
pela socióloga Maria Filomena Gregori, de “erotismo politicamente
correto”. Não por acaso, na discussão sobre a terceira idade, os médicos
vão perdendo terreno para os psicólogos.
“A velhice se tornou a idade do lazer e da realização pessoal”, diz
Guita. Essa concepção, que não se restringe ao Brasil, acaba influindo
diretamente nas definições do que é ser velho e nos parâmetros da
“gestão do envelhecimento”. “Não deixa de ser também um novo mercado,
porque, entre todos os grupos sociais, o dos velhos é o que tem mais
disponibilidade de consumo”, diz a antropóloga.
A derrubada do mito da velhice assexuada se deu em campos
múltiplos. Estudos de várias áreas comprovaram que a sexualidade não se
esgota com o passar dos anos. É indiscutível o declínio da frequência
das relações sexuais, mas emerge, por outro lado, a percepção de que a
qualidade dessas relações pode aumentar. Os encontros podem tornar-se
mais livres e afetuosos. Percebe-se que os papéis tradicionais de
gênero, nesse sentido, tendem a se inverter: as mulheres passam a ser
menos recatadas e os homens, mais afetuosos. Nas sensações também
haveria mudanças: o prazer estaria espalhado pelo corpo, ocorrendo um
processo de “desgenitalização”.
A sexóloga e psiquiatra Carmita Abdo, do Projeto de Sexualidade
(Pro-Sex) do Hospital das Clínicas da Universidade São Paulo, coordenou
em 2008 o Mosaico Brasil, um amplo estudo sobre a sexualidade dos
brasileiros. Os resultados mostraram que a atividade sexual é mantida na
velhice, mas não sem percalços. “A chegada da menopausa na mulher, com o
fim da produção de hormônios, causa um grande impacto físico e
psicológico, em especial num país que cultua tanto a beleza e a
jovialidade”, diz Carmita. Entre os homens, a fertilidade se mantém,
mas, a partir da quinta década de vida, aumenta a incidência de
problemas de saúde que comprometem a potência sexual.
O desejo, no entanto, permanece. “O repertório sexual muda com a
idade. Torna-se menos arrojado, até pelas limitações da mobilidade
física”, diz a sexóloga. “O ato é mais rápido do que antes, mas as
carícias se prolongam. O prazer é tanto maior quanto for a cumplicidade
do casal.” Relações não maritais também vêm aumentando, tanto entre
homens quanto entre mulheres, muitas vezes com parceiros mais jovens.
Portanto, um “sexo sem pressa” seria o marco dessa fase da vida. O
surgimento dos medicamentos contra a disfunção erétil, contudo,
prenuncia um reajuste de discurso que ainda está em andamento. “O
triunfo da ênfase nos ganhos da velhice, ainda que possam ter eclipsado a
necessidade de atenção às perdas físicas, contribuiu positivamente para
quebrar preconceitos e trouxe uma aceitação da diversidade relacionada à
idade”, diz Guita. E a ideia de que uma vida sexual ativa faz bem à
saúde tem fundamento, segundo Carmita, ainda que de modo indireto, pela
satisfação que traz.
Num aparente paradoxo, a nova configuração das concepções de
velhice permitiu até mesmo uma libertação, entre as mulheres, das
“obrigações” da vida sexual regular e característica das relações
maritais. Muitas idosas viúvas, solteiras e separadas, ou cujos maridos
sofrem de doenças incapacitantes, frequentam bailes da terceira idade,
objeto de estudos separados das antropólogas Mirian Goldenberg, do
Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, e Andrea Moraes Alves, da Escola de Serviço Social da mesma
instituição. Ambas detectaram uma continuidade dos investimentos na
sexualidade do corpo – a vaidade e os cuidados estéticos se mantêm,
embora sem o vínculo com o exercício da sedução –, mas agora acompanhada
de liberdade: a liberdade de não transar.
É o que Mirian define como uma substituição do “eu preciso” (ser
mãe, esposa, amante) pelo “eu quero” (diversão, prazer, amizade com
outras mulheres). O parceiro da dança, geralmente mais jovem, não é
necessariamente um parceiro sexual. Essa abstinência, para muitos
analistas – incluindo Guita Debert, Carmita Abdo e a própria Andrea
Moraes Alves –, ainda revela a carga de uma moralidade conservadora e
“atrelada ao estereótipo da mulher que deve obedecer”, nas palavras da
antropóloga da Escola de Serviço Social da UFRJ. Seja como for, Mirian
ressalta que as entusiastas desses bailes resistem “às imagens de um
corpo envelhecido”. Um dado revelador, nesse sentido, é apontado por ela
entre os dados de sua pesquisa: o único grupo social que discorda da
conhecida ideia de que os homens envelhecem melhor é o das mulheres
acima de 60 anos.
As pesquisas conduzidas por Mirian, que deram origem ao livro
recém-lançado A bela velhice (editora Record), mostram que, ao chegar à
terceira idade, as mulheres se sentem propensas a se distanciar de uma
vida familiar que mais cobra do que proporciona, enquanto os homens,
depois de anos dedicados a obrigações profissionais, procuram na família
um acolhimento que se reveste de novidade e gratidão.
Profissionalmente, também há um contraste entre os gêneros. “Enquanto os
homens idosos se realizam com novos estudos e novos trabalhos que
trazem prazer, mais do que remuneração, as mulheres buscam fazer
exclusivamente coisas de que gostam, geralmente no campo da socialização
e da reciprocidade”, diz Mirian. Guita percebe fenômeno semelhante: as
mulheres procuram a amizade de outras mulheres, os homens se engajam em
atividades conjuntas com outros homens, como associações de aposentados.
A aposentadoria, como reivindicação-símbolo do estrato social dos
idosos, é, segundo Guita, o marco do discurso gerontológico dos anos
1970, “em seu empenho em sensibilizar o poder público e a sociedade para
a importância de estudos e de ações voltadas para um envelhecimento
populacional bem-sucedido”. A antropóloga observa, no entanto, que a
ênfase numa visão negativa da velhice já não encontrava, nas pesquisas,
concordância da parte dos próprios idosos. Hoje mais ainda: como atestam
depoimentos colhidos por Mirian Goldenberg, muitas pessoas dizem viver
na velhice a melhor fase de suas vidas. Os depoimentos de idosos que
participam de universidades e demais grupos de convivência para a
terceira idade revelam um otimismo que não se coaduna com a ideia de uma
fase da vida marcada pela falta.
Tais associações, inclusive aquelas criadas por órgãos públicos
como a Secretaria dos Direitos Humanos do governo federal, seguidamente
se rebelam contra discursos oficiais que atribuem aos sistemas de
bem-estar dos idosos a responsabilidade por gastos públicos excessivos.
“Combater os preconceitos em relação à velhice era mostrar que seus
participantes mantinham a lucidez e sabiam criticar os governos, os
políticos e as interpretações errôneas que a mídia fazia de todos os
diferentes aspectos da vida social brasileira”, escreveu Guita no artigo
“Fronteiras de gênero e a sexualidade na velhice”. “Muitos deles eram
críticos dos programas para a ‘terceira idade’, que alguns chamavam de
‘playground de velhos’, por desviarem aposentados e pensionistas de seus
reais interesses.”
O descompasso entre as percepções da velhice presentes nos
discursos hegemônicos, de um lado, e na experiência dos próprios idosos,
de outro, vigora igualmente no campo da sexualidade. A visão “oficial”
aborda o erotismo na terceira idade de um ponto de vista da manutenção
da juventude. “Não consta nenhuma intenção de promover, do ponto de
vista estético, os corpos envelhecidos”, diz Guita. O novo mito da
velhice feliz e erotizada também cobra seus dividendos. A antropóloga
Andrea detecta, nas mulheres idosas, diferentes “estratégias” no modo
como elas lidam com o próprio corpo. Uma delas é “negociar”
constantemente os limites do rejuvenescimento. De um lado, investem em
cirurgias plásticas, maquiagem e roupas para prolongar a aparência
jovem. De outro, se mantêm alertas (e tensas) para não correr o risco de
parecerem “velhas ridículas e vulgares”. E raras são as mulheres que,
ainda nos primeiros anos da velhice, enfrentam o tabu dos cabelos
brancos, sem tintura, “tão marcante no Brasil”.
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