O Judiciário é o poder típico da tradição liberal. Ele existe para defender direitos, mesmo que para isso tenha de se colocar contrariamente ao desejo da maioria
por João Feres Júnior e Fábio Kerche
Ouvimos cotidianamente o termo democracia sendo
usado para descrever o regime político hegemônico hoje no mundo. Esse
uso é historicamente recente. De fato, até o começo do século XX, o
termo era usado quase que exclusivamente para designar o regime de
participação contínua e direta da antiguidade ateniense, e não sistemas
políticos modernos. Isso não é à toa. Há diferenças fundamentais entre
aquele sistema político e o atual. A chamada democracia representativa
contemporânea é produto do encontro entre duas tradições: aquela
democracia grega e o liberalismo político europeu. Da democracia dos
gregos veio a ideia de que a decisão deve expressar a opinião da
maioria, e ser imposta sobre as minorias. Do liberalismo advém a
tradição de que esse princípio majoritário deve ser limitado por
direitos individuais, que protegem as minorias contra aquilo que os
fundadores da república norte-americana chamavam de "tirania da
maioria". Embora diferentes regimes democrático-representativos
contemporâneos combinem estas duas tradições de formas distintas, elas
sempre estão presentes.
Essas tradições são traduzidas de forma concreta por meio de
instituições dos Estados democráticos contemporâneos. Pode-se afirmar
que o poder legislativo é tipicamente um poder democrático. É no
Parlamento que as maiorias, por meio de seus representantes, fazem suas
escolhas mesmo que em detrimento das opiniões minoritárias. O poder
judiciário, por sua vez, é o poder típico da tradição liberal. Ele
existe para defender direitos, mesmo que para isso tenha de se colocar
contrariamente ao desejo da maioria.
E é positivo que seja assim: a vontade irrefreada da maioria, sem a
defesa de direitos individuais, produziu o Terror na Revolução Francesa,
o Nazismo e uma pletora de linchamentos físicos e morais em sociedades
sem instituições fortes. A função do Judiciário de coibir os abusos das
decisões majoritárias confere estabilidade ao sistema, pois as partes
sabem de antemão que não correm o risco de serem massacradas caso
eventualmente se encontrem em posição minoritária. Nesse mesmo sentido,
são os direitos individuais frente aos coletivos que garantem um
julgamento justo independentemente da gravidade do delito.
O argumento de alguns ministros do STF e de parte da mídia de que a
decisão sobre os embargos infringentes no caso conhecido como "mensalão"
deve atender ao clamor da opinião pública, "um suposto desejo da
maioria", é desconcertante, pois o julgamento é tipicamente um momento
em que se deve buscar a garantia de direitos. Junte-se a isso o problema
de se estabelecer qual o conteúdo específico da vontade da maioria,
quando, como no caso em questão, ela não é manifesta por meio de
instituições, como por exemplo uma câmara legislativa. Assim, quem
seriam os legítimos intérpretes da vontade popular? Certamente não os
ministros do Supremo. A legitimidade do Supremo Tribunal Federal no
nosso sistema político pode ser explicada de várias maneiras, mas
nenhuma inclui a função de intérprete conjuntural da vontade pública. O
que está em jogo não é um suposto desejo da maioria pela condenação, mas
a garantia de um julgamento que respeite direitos.
A “democratização” do judiciário, da qual muito se fala, é de fato
uma importante conquista, mas deve ser buscada, por exemplo, em novas
formas de indicação dos ministros e na criação de procedimentos de accountability
dos tribunais, mas não na abertura do processo às pressões de uma
suposta opinião da maioria. O risco que estamos vivendo não é o da
impunidade, inclusive porque os réus já foram condenados, mas de um
perigoso desvio de função de uma das instituições que é sustentáculo da
democracia contemporânea.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/politica/a-democracia-propriamente-dita-3202.html
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