Introdução geral
É preciso
perceber três espécies de globalização se queremos escapar à crença de que este
mundo, assim como nos é apresentado, é a única opção
verdadeira:
há o mundo tal como nos fazem vê-lo, com
a globalização como fábula; o segundo é o mundo como ele é, com a globalização
como perversidade; e o terceiro, o do mundo como ele pode ser, o da outra
globalização.
A
globalização tem três faces, portanto: é uma fábula, na medida em que
fantasia-se acerca de mitos como a comunicação universal, o fim do Estado e a
aldeia global.
O outro
lado é a globalização perversa, que ataca a maioria dos países pobres, trazendo
miséria, fome e doenças. Mas as mesmas técnicas que permitem em países ricos a
proliferação da ideologia perversa permitirão aos países pobres um movimento de
baixo para cima, que imporá uma nova ideologia mais
humana.
A
produção da globalização
Como só
se pensa na crise financeira, a crise política, a crise social e a crise moral
ficam em segundo plano e se aprofundam mais.
A
globalização é produzida com uma série de ferramentas, como a unicidade da
técnica, que faz com que todo o mundo tenha acesso às últimas novidades
técnicas. A informação é outro expediente que permite a técnica única e que leva
à convergência de momentos, ou seja, à ocorrência em todos os grandes centros
dos efeitos das mudanças no resto do mundo. Mas essa informação é deturpada e
também gera efeitos.
A
unicidade da técnica e a convergência de momentos fazem com que a o único motor
do mundo seja a mais-valia. Tudo se faz para aumentá-la e, em conseqüência, a
competitividade aumenta.
O motor
único também é possível graças ao conhecimento do planeta, à medida que é
possível escolher lugares e materiais mais
lucrativos.
Tudo isso
leva a crer que o período por que passamos é uma crise, que requer uma mudança
estrutural.
Uma
globalização perversa
A
globalização perversa é baseada em fábulas como a da comunicação global, do
espaço e tempo contraídos, da desterritorialização e da morte do Estado. São
fábulas porque a informação é centralizada e manipulada no interesse das grandes
empresas. A diminuição de espaço e tempo pregada só acontece para poucos. A
globalização perversa precisa dos territórios e dos governos internos para se
manter e a morte do Estado, por sua vez, só aproveita às poucas empresas
hegemônicas.
Todas
essas fábulas são inculcadas nos cidadãos antes mesmo de qualquer
ação.
A busca
incessante pelo dinheiro leva à competitividade que gera individualismos e
violência. O discurso hegemônico, por sua vez, faz isso parecer inevitável. Sai
de cena então a solidariedade e cresce o desemprego e a
miséria.
Os homens
não são mais cidadãos, mas meros consumidores, comandados pelas técnicas de
marketing e design, impostas pela suposta
“informação”.
A ciência
(e aí se incluem as pesquisas eleitorais) é ideologizada e também cai num
círculo vicioso para legitimar a própria ideologia de que é
vítima.
Nascem
daí a violências estrutural e a perversidade sistêmica, onde a competitividade e
a potência (falta de solidariedade ou prevalência sobre os outros) puras, unidas
à ideologia neoliberal, fazem parecer normais as exclusões sociais. Fala-se
muito em violência da sociedade de nosso tempo, mas esquece-se que as violências
que mais percebemos são apenas derivadas. A violência estrutural resulta da
presença, em estado puro, da competitividade, da potência e do dinheiro. A
essência da perversidade é a competitividade, uma guerra em que tudo vale para
conquistar melhores espaços no mercado.
Na
evolução das sociedades o progresso da ciência caminhava em direção ao da
humanidade. A revolução industrial quebrou esse ritmo, mas as idéias filosóficas
e morais da época conseguiram manter um contrapeso. O resultado foi o alcance do
Estado Social. A globalização perversa ainda consegue quebrar esse processo e
faz o homem retornar ao estado primitivo do cada um por si. Milton Santos
entende, portanto, que o homem caminha para o progresso, mas há algumas falhas
nessa caminhada.
Além
disso, os avanços tecnológicos apenas servem aos interesses do mercado, sem
consideração com os da humanidade.
Por outro
lado, as grandes empresas passam a dominar o cenário político e chantageam
governos para que concedam incentivos fiscais na
instalação.
De todo
esse processo advém a pobreza estrutural, excludente, que a ideologia
neoliberal (Hayek) insiste ser necessária, inevitável e natural e que, por isso,
deve-se em alguma medida estimulá-la. Se a crise é estrutural, não são possíveis
soluções não-estruturais. A ruptura como o sistema da globalização perversa há
de ser total.
Nesse
quadro, o papel dos intelectuais é quebrar o pensamento único, fazendo a
dialética, porque o globalitarismo só é forte se encontra contrapartida interna.
Quer dizer, depende de cada país o modo com vai se inserir na
globalização.
O
território do dinheiro e da fragmentação
Antigamente as diferentes velocidades
entre os Estados não separavam os agentes, pois a política compensava a
diversidade, assegurando a soberania de grandes diferenças e conduzia ao
enriquecimento dos direitos sociais.
A
globalização traz a ideologia de que a fluidez é um bem comum, quando na verdade
apenas alguns agentes podem utilizá-la. Imponto o ritmo, o mercado controlado
pelas grandes empresas busca apenas expansão e não união. O mundo é forçado a se
amoldar às vontades e necessidades das empresas.
Como
conseqüência, fragmenta-se o território, com as empresas hegemônicas criando
ordem para si e desordem para o resto. Em reação a esse fenômeno criam-se novas
soberanias, como o país basco.
Na
agricultura, por exemplo, há uma demanda externa de racionalidade, que leva à
militarização do trabalho: deve-se seguir as regras hegemônicas da produção
(soja, por exemplo). Isso leva à servidão e ao
desemprego.
Por isso,
diz-se que o campo é o lugar da vulnerabilidade e a cidade o da resistência.
Esta característica da cidade pode ser explicada porque nela as racionalidades
da globalização se difundem mais extensivamente, ainda mais quando paralelamente
há produção de pobreza. Mas ambos estão subordinados às lógicas das empresas
globais, que impedem as regulações locais. O que vale é a norma global. Daí
criarem-se regionalismos exacerbados que ameaçam a integridade nacional. A vida
acaba obedecendo às lógicas exógenas.
Milton
Santos percebe a necessidade de uma federação de lugares, a partir de células
locais, uma regionalização não fragmentada para que se possa atuar na
federação.
Outra
dado que pode ser reunido é o das metamorfoses dos conceitos de território e
dinheiro. O território passa a ser a identidade de determinado lugar, ao passo
que o dinheiro não representa mais apenas elemento de troca, mas fator de
avaliação das características de dado território. Como exemplo dessa constatação
lembro os avaliadores de riscos dos países, que se especializaram em estudar o
valor que determinados lugares tem na mercado
internacional.
O domínio
do dinheiro acaba tendendo a homogeneizações, que são contrariadas aos poucos
pelas resistências locais. Na América Latina esse processo se dá através do
macrocrescimento de algumas empresas. Esse crescimento satisfaz a busca dos
governos neoliberais pelo aumento do PIB. Por isso, é necessária a decisão das
minorias de participar ativamente do processo, decisão que fortalece todos os
entes da federação.
O autor
apresenta a teoria das verticalidades e horizontalidades. As verticalidades
seria forças de ordens externas e superiores que atendem a interesses
corporativos – pontos que formam “o espaço de fluxos”. O poder assim exercido
leva o processo organizacional a se dar no ritmo dos macroagentes que não dão
espaço aos pequenos. Esse modelo tem a característica de ser construído para ser
indiferente ao seu entorno. Suga-se até não dar mais, depois,
adiós!
Ao passo
que se pode caracterizar as verticalidades como forças centrífugas, as
horizontalidades são centrípetas; são forças que não são criadas por políticas
estabelecidas, pois são fruto da adaptação a situações que exigem dos atores
permanente estado de alerta.
São a
contra-racionalidade, que contraria as racionalidades hegemônicas mesmo sem uma
política uniforme. É o entendimento difuso de que as verticalidades não são
boas. Por apresentarem essa característica, são propícias a formar
solidariedades.
Essa luta
de verticalidades e horizontalidades resulta num processo dialético que impede
que o espaço de todos – o espaço banal – seja sufocado. Junto ao conceito de
espaço Milton Santos dá o conceito de lugar: espaço em que se exerce a cidadania
e se pode existir (p. 114).
A
geografia revela que as aglomerações e as situações de vizinhança fazem com que
as pessoas não se subordinem à racionalidade hegemônica, se entregando com mais
facilidade às manifestações contra-hegemônicas, num movimento de baixo para
cima. É a dialética da contra-racionalidade.
Limites à globalização
perversa
A
escassez de recursos e a incitação ao consumismo fazem com que os mais pobres
percebam sua posição e desvendem a mentira do discurso, permitindo o surgimento
de variáveis ascendentes (que se impõem) e levando à desobediência. Assim, são
postos limites à racionalidade dominante.
Desvendada a mentira, percebe-se que a
imperatividade e unicidade da técnica não existem e não são possíveis porque as
técnicas têm que guardar relação com o lugar que serão aplicadas. A política, no
entanto, pode ser imperativa e até permitir a técnica
única.
A vida
cotidiana se opõe à técnica do just-in-time, porque respeita as
diferenças e cresce com elas. As múltiplas formas do cotidiano são uma
heterogeneidade criadora.
Com a
produção hegemônica de necessidades e a incorporação de modos de vida também
hegemônicos são criadas duas situações distintas: a escassez dos ricos, que
quanto mais consomem, mais sentem necessidade de consumir, ficando em permanente
estado de escassez. Cria-se a rotina da falta de satisfação – comprar um bom
vídeo cassete não basta, então compra-se um DVD, que também não basta, e
compra-se um home theater, que acaba sendo grande demais para a sala;
então, faz-se uma sala maior e aí por diante.
A
escassez dos pobres é diferente, mas tem melhores frutos. Como não conseguem e
talvez nunca conseguirão consumir, por esse mesmo sentimento de escassez passam
a buscar bens imateriais e infinitos, como a solidariedade, por exemplo. A
escassez do pobre leva a novas descobertas e ao entendimento do
mundo.
Mas a
pobreza não pode chegar à miséria, que aniquila. A pobreza é ativadora de lutas
e leva à tomada de consciência. Elabora-se assim a política dos de baixo,
alimentada pela necessidade de existir e pela desilusão das demandas não
satisfeitas. Parte-se para a rebeldia.
Os
movimentos organizados, por sua vez, devem imitar o cotidiano dessas pessoas
para se tornarem perceptíveis. Os partidos devem ser o espelho de seus
eleitores.
A questão
da classe média também é interessante. Ela teve seu apogeu e agora sente de
perto a crise: antes era a maior beneficiária do crescimento econômico, mas
agora não tem a força política de antigamente e sente a escassez e a insegurança
de perto. Num primeiro plano começa a lutar por vantagens individuais que, com a
tomada de consciência, tornam-se sociais e se identificam com os clamores dos
pobres. Passam a ter a função de implantar a democracia forçando o ideário e as
práticas políticas.
A
transição em marcha
Milton
Santos observa duas conseqüências da evolução causada pela escassez: a primeira
é a nova significação da cultura popular e a outra é a produção de condições
empíricas para a emergência das massas populares.
Nota-se
uma contraposição entre a cultura de massas e a cultura popular. A primeira
tenta se impor mas é obstada pela cultura popular, que se difunde à medida que a
escassez faz nascer os regionalismos. Como o povo não dispõe dos meios para
participar da cultura de massas (turismo, por exemplo), cria no trabalho e no
cotidiano sua cultura popular, numa aliança da espontaneidade à
ingenuidade.
Como
condições empíricas, ressalta-se a mudança da divisão do trabalho por cima e por
baixo. A primeira é a da globalização perversa e obedece a técnicas de
racionalidade hegemônica. A divisão por baixo produz solidariedade dependente
unicamente dos vetores horizontais do território e da cultura
local.
Na
transição para a globalização includente, o homem passa a ser o centro;
relega-se a um segundo plano a importância do mercado e do dinheiro em estado
puro. Busca-se garantir o mínimo para a satisfação das necessidades de uma vida
digna, abolindo a regra de competitividade e adotando a da
solidariedade.
O povo
perceberá também que os mercados comuns são representativos apenas dos
interesses das grandes potências. A “cooperação” (Alca e Mercosul) é
interesseira. Tomará consciência de que é terceiro mundo e vai rever os pactos
globalitários.
Outro
dado é a crescente desordem da vida social, que permite antever a queda do
modelo econômico globalitário. Apesar de as potências perceberem esta desordem e
buscarem contorná-la, a sociedade ainda assim se mantém desordenada, porque o
modelo é insustentável. A solução acaba sendo simples: as populações que não
podem consumir o ocidente globalizado recusam a
globalização.
Milton
Santos dá um conceito de nação ativa e passiva: a primeira seria, na visão
globalizante, a nação que obedece aos desígnios externos produzindo ideologia. A
passiva é residual, é o que não é ativa. Trabalha com o intelectual público que
vive uma contradição: é obrigado a se conformar em suas atividades com a
racionalidade hegemônica, mesmo estando insatisfeitos e inconformados. A
vantagem é que a nação passiva é fortemente ligada ao cotidiano, tendo base mais
sólida, de modo que, com a maioria a seu lado, é possível pôr em prática seus
projetos de nação.
O papel
dos intelectuais nesse processo é mostrar analiticamente as manifestações de
luta e de resistência à hegemonia dominante, permitindo que essa visão seja
utilizada pela sociedade como elemento de postulação de uma outra política
social (p. 158). O choque das realidades tem papel importante na
mudança.
A
globalização atual não é irreversível e, aliás, já se mostra presente uma
dissolução das ideologias, levada a cabo pelo choque das realidades com as
ideologias. (p. 159)
O futuro
se dará de acordo com as escolhas feitas sobre dois valores: os essenciais ao
homem, como a liberdade e a dignidade; e os valores contingentes (incertos), ou
seja, eventuais da história de determinado momento. Da conjugação entre essas
duas classes de valores é que nascerá a sociedade
futura.
A mudança
já é visível porque a ideologia perde a sustentação, já que ninguém consegue
consumir o que existe em oferta. É preciso uma nova ideologia, que dê valor ao
trabalho de baixo, verdadeiro motor para o alcance do
futuro.
O
computador acaba sendo uma boa ferramenta para a mudança, porque não requer
grande investimento e se dissemina rapidamente no corpo
social.
A
aglomerações humanas permitirão maior identificação das situações e observarão o
peso da cultura popular. A própria mídia atentará para o fato de que a população
não é homogênea e, portanto, será obrigada a deixar de representar o senso comum
imposto pelo pensamento único.
Para
formar um novo mundo, é preciso também consciência individual, que inicia com a
descoberta, passa pela visão sistêmica e culmina com a discussão interior e o
debate público, que permite enxergar os porquês. Essa consciência do “ser mundo”
permite superar o endeusamento do dinheiro e enfrentar uma nova
trajetória.
A
política terá também grande papel, mas deve aproveitar as atuais técnicas
hegemônicas e dar a elas novo uso e nova
significação.
Resumo:
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência
universal. 5. ed. Rio de Janeiro : Record, 2001.
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