sábado, 26 de maio de 2012

Quando a hipocrisia é o limite



Suelen e o imperdoável orgulho vadia


Por Miguel Rios
Suelen é a farpa no horário das 21h. É quem desagrada, quem lateja, em Avenida Brasil. Esqueça Carminha e suas maldades e hipocrisias. Esqueça Nina e sua incompetência vingativa. Esqueça as peruas pedantes. Esqueça os enganados Tufão e Jorginho. Esqueça qualquer um. Suelen incomoda por ela ter se metido na pouca roupa da periguete assumida, da biscate sem culpas, da vadia de corpão e alma desprendidos.

Ela é a prova de como o sexo inquieta. Como irrita. Sexo, sexo mesmo. O devasso. O sem compromisso, sem romance, o por tesão e só. Como ele continua tabu. Desautorizado.

Como o obsceno nos espanta. Como mulheres Suelen tremem as estruturas, reviram as entranhas, emergem o ódio formatado. Como um bustiê, uma calça de lycra, uma cintura marcada, seios em decote, correntinha nos quadris e um rebolado desinibido causam tanta raiva.

Ser vadia, das assumidas, das debochadas, das que passam na cara, é pedir pedradas. Desde os tempos bíblicos, as pedradas perduram. Ninguém se nega a jogar a primeira. Como se quer incriminá-las, se quer puni-las, erradicá-las. Como se joga nelas a responsabilidade até de alguma violência que sofrem, pelo pecado franco e ambulante que são.

Nestes tempos de guerra à intolerância, não se reconhece o direito ao periguetismo. Nem se imagina a possibilidade de um dia reconhecer. Quando se trata de sexo liberto nem se discute. De antemão, se decreta: está errado. Quem não se submete não serve.

Caso de Suelen. Avistá-la deixa os caras acesos. Testosterona pulsando. Normal. Impulso sexual, primitivo. “Homem é assim mesmo”, grita a claque.

E ela quer ser desejada, quer os olhares e não tem vergonha de querer. Exibe o desejo. Adora transar e o faz quando tem vontade. Não se priva. Desobedece à cartilha, deixou de ser lacaia do recato, do adequado. Decidiu ser cachorra e não tchutchuca.

Revolta da claque. Mulher não tem direito a hormônios, a impulso sexual. “Mulher nunca pode”, “se fez, tem que se arrepender, se converter”. Mas a mulher Suelen encara as pedras, paga o preço, se recusa a rezar pelo catecismo escravizador do “eu não posso”, “eu não devo”, “o povo vai falar”, “preciso me valorizar”.

Aí vem o sermão religioso. De que se perdeu, de que é a vergonha do sexo feminino. E vem acompanhado pelo sermão cultural. De que é escrava do machismo, se tornou objeto, de que é vergonha para o sexo feminino.

Como ainda caímos nos engodos do senso comum. Como o conservadorismo se transmuta. Como a moral burguesa é ladina. Como nossas avós condenavam as que “se perdiam” à expulsão, à repulsa e ao esquecimento. E como censuramos a que resolveu ter muitos homens, a que pega quem quer. A que igualou o jogo: “Se a eles é permitido, a mim também”.

Quando se trata de sexo, sexo livre, livre mesmo, do feroz, nos encolhemos. Constrange. Até os libertários, os esclarecidos, recuam, abrem espaço de fininho, se vitimam. Culpam a mídia por espalhar o vírus vadia. Capazes de inventar, dentro em pouco, uma ameaça de ditadura biscate.

O conceito da boa moça e do bom moço, não tem jeito, emerge, sobressai, contagia. Como ainda as correntes puritanas nos seguram. Como é complicado destravar este cadeado. A cela até se ampliou, mas não se abriu.

Sexo solto nos importuna. Sempre tido como errado, fora de propósito. Chamar de apelativo virou praxe, facilita, se concorda fácil. Nunca é visto como o que faz parte, o natural, o libertador, a escolha pessoal.

Como o sexo sem o “isso não pode”, o “isso eu não faço”, o “aí não” nos é espinhoso. E tentador. Como queremos puxão de cabelo, local impróprio, xingamentos e palavrões. Como a pornografia seduz. Como é essencial para satisfação solitária ou esquentar relacionamento. Como temos fantasias inconfessáveis.

E como é diário. Como viramos a cabeça para olhar bundas, receber um retorno. Como quem está dentro dos padrões de gostosura e se expõe, se vangloria, se faz safado, nos atrai. E como nos envergonhamos de confessar o que sentimos. Como negamos.

Defendemos o direito da mulher a usar a roupa que usar sem ser violentada, mas, lá dentro, a beata aguarda vigilante. Basta uma Suelen passar por nós e já vem, no automático, à mente: “Que rapariga!” Quantos não saem de uma marcha das vadias para criticar Valesca Popozuda e a Mulher-Melancia? Quantos “que rapariga!” já não dirigiram a elas?

Como aceitamos bem mais as canalhas, as vigaristas, desde que sejam resguardadas, classudas. Pode ser desalmada como a madrasta de Branca de Neve, pode ser prepotente como Miranda Priestly em o Diabo veste Prada. Ganham maior simpatia que uma Suelen. Tudo se perdoa, menos o sexo desatado, desavergonhado, evidente, vivido na boa.

Uma periguete é para as comportadas o que um efeminado é para os másculos. A chance de sair por cima. Preconceito tem tal serventia. De apontar o dedo e se autoafirmar: “Eu sou melhor. Eu sigo as regras, a sociedade me aprova e não a essa vagabunda”.

Como atacar com “vagabunda” e “veado” nos esteriliza, nos eleva. Como precisamos nos mostrar um patamar acima. Como o queixo erguido, um tom de voz superior, um ataque de pedestal nos são vitais. Como precisamos subir nas costas dos outros, fazê-los de escada, para acenar vitoriosos. Como repetimos padrões antigos e damos nova roupagem. Como perpetuamos a ditadura de decidir pelo outro com a desculpa de protegê-lo dele mesmo. Como somos excludentes descarados.

É que nos dói ver o desabonado seguir em frente, nem tchu pra nós. Dói saber que há gente com vontade própria, que, por opção, rompeu com leis arcaicas tipo mulher que presta é mulher pouco usada, que decência rima e é sinônimo de inocência. De que deve ser humilhado quem estiver desencaixado.

Fazer o quê? Se Xuxa enriqueceu, mudou, tentou apagar o passado pornô soft, e ainda hoje paga por ele, com o dedo do Brasil apontado para sua cara, a desacreditando, a acusando de sem moral para qualquer ato, uma insolente Suelen da vida está destinada a ser destratada até por uma falsa e traiçoeira, porém senhora casada, Carminha da vida. E como Carminha tem nosso consentimento.

Nenhum comentário: