terça-feira, 13 de setembro de 2011

Narrativas da vida real


Ensaio sobre o divórcio

Sandra Mathias *

Um vento frio e uma paisagem cinza deram as boas-vindas enquanto o avião taxiava pela pista do Aeroporto Santos Dumont. O sol quente e céu azul – cartão postal da Cidade Maravilhosa – se esconderam naquela manhã, talvez para me lembrar de que, depois de dois meses, estava eu de volta ao Rio de Janeiro para sacramentar o meu atrevimento supremo: ter abandonado um casamento de vinte anos.

Como toda escolha tem um preço, o meu tinha sido alto demais. Aos 42 anos, estava recomeçando da estaca zero. O filho mais velho tinha optado por ficar na cidade e estava infeliz. A caçula, sem saída, seguiu comigo para São Paulo. Todos estavam se readaptando e ainda lambendo as feridas.

- Quem disse que ia ser moleza? - murmurei para mim mesma enquanto caminhava rumo ao desembarque.

Ali estava eu, disposta a mostrar que a minha decisão não era brincadeira e nem tinha retorno. Me sentia tão segura que escolhi a roupa com o cuidado de quem deseja provar sua metamorfose: saia cinza de corte reto, blusa branca, elegantes scarpins e bolsa pretos compunham o meu visual de nova mulher. Os cabelos pintados e num corte moderno, o perfume importado, o batom vermelho, o relógio caro e a pasta de executiva eram, agora, a minha marca registrada.

Lembrei da minha aparência envelhecida e amargurada ao chegar a São Paulo e de quando o meu irmão resolveu me dar um “banho de loja e perfumaria”, e ri sozinha.

- A senhora não precisa só de manicure. Precisa pintar e cortar o cabelo, fazer uma depilação, limpeza de pele e sobrancelha! - explicou a recepcionista do salão horrorizada com o meu estado.

Passei por uma “senhora” transformação. Dessas que a gente vê nos programas de domingo e nem acredita que é a mesma pessoa. Pois é, comigo foi tão radical que o moço do estacionamento não queria entregar o meu carro. Foi engraçado e terrível ao mesmo tempo.

Ruminando as lembranças, tomei um táxi para o meu destino, mas a segurança e a tranquilidade evaporaram no segundo em que avistei o prédio do fórum. Já havia estado ali muitas vezes, mas nunca tinha prestado atenção aos seus corredores de cor indefinida, estreitos e claustrofóbicos.

Vendedores ambulantes de café e salgadinhos, aos gritos, se misturavam a uma multidão de pessoas de todas as classes. Pessoas famintas de justiça, de solução ou de desforra.

Advogados empertigados em seus ternos e carregando pilhas de papéis e processos estavam por toda parte, imunes à dor e à alegria de cada um. A frieza fazia parte do ofício.

Foi nesse instante que vi os três, e meu estômago se contraiu em desespero. Já não dava para recuar, pois eles também tinham me avistado.

- Olá, como vai? - perguntou a minha advogada fingindo interesse.
- Como foi a viagem? - acrescentou o seu parceiro, tentando ser agradável.

E, por fim, meu ex-marido, pai de meus dois filhos e com quem compartilhei toda uma vida, me beijou no rosto, sem qualquer palavra.

Ficamos por ali simulando uma conversa natural e corriqueira de velhos amigos. Nada é mais patético e constrangedor do que a assinatura de um divórcio, ainda que amigável. Eu me sentia ridícula, deslocada, sem saber onde colocar as mãos ou o que falar. Queria me ver livre daquilo o mais rápido possível e sabia que o pior ainda estava para acontecer.

Os minutos foram se transformando em horas, a pauta do juiz se inverteu e fomos transferidos para os penúltimos da fila. A tortura parecia não ter fim.

- Sandra “versus” Nelson Mathias! - gritou uma voz sem rosto por detrás da porta aberta.

Tinha chegado a hora e, ao invés de experimentar a sensação de vitória com que tinha sonhado durante tanto tempo, um medo silencioso e paralisante tomou conta de mim.

Dizer “não” perante um juiz me causava calafrios e eu sabia o porquê. Era descumprir – oficialmente – as minhas promessas de 20 anos atrás. Era assumir publicamente um relacionamento fracassado e admitir que não era perfeita. Era, enfim, me transformar numa divorciada. Estigma para o qual mulheres da minha geração não tinham sido preparadas.


Nelson

Ele não foi o meu primeiro amor, mas com certeza a minha maior ousadia. Era negro, alto, bonito, charmoso, engraçado, pé-de-valsa, inteligente e ainda por cima carioca... Predicados ou defeitos suficientes para fazer com que meu pai – um português conservador que não fazia outra coisa senão zelar pela virgindade da única filha – berrasse furioso, sempre que tinha oportunidade:

- Você vai arranjar uma barriga e esse cara vai te largar na mão!...

Eu estava enfeitiçada e, pela primeira vez, disposta a derrubar os argumentos rançosos que ele sempre encontrava para minar os meus relacionamentos:

- Esses cariocas não querem nada com a vida. São todos uns vagabundos e você vai se arrepender quando voltar pra casa “buchuda” e com um pé no traseiro! Quem avisa, amigo é.

E continuava a praguejar, profetizando um futuro “literalmente negro” para mim. Curioso, ainda, era o fato de que todas as pessoas eram excelentes até demonstrarem interesse pela sua filhinha. A partir de então, transformavam-se em maconheiros, desocupados, vigaristas e cafajestes.

Com os negros era um capítulo à parte. Seus melhores amigos eram negros. Sentavam-se à nossa mesa e eram frequentadores assíduos da nossa casa. Mas bastou flagrar a filha com um deles, que um racismo inexplicável aflorou, desembestado.

Existe um ditado popular que usamos para definir quando alguém dá um tratamento desigual a duas situações iguais. Pois é, meu pai estava usando “dois pesos e duas medidas”. E beirava a grosseria quando o rapaz vinha nos visitar: dormindo no sofá da sala para demonstrar total desinteresse pela sua presença ou deixando a sua mão esticada no vácuo, na hora do cumprimento. Isso quando não chegava com umas cachacinhas a mais e sem freios na língua. Foram dias de terror.

Eu estava apaixonada – hoje me questiono se era pelo homem ou se era pelo amor que julgava ver nos seus olhos. E me perguntava o porquê de tal “deus do Olimpo” ter me escolhido quando arrastava atrás de si uma multidão de “garotas de Ipanema”, dispostas a romances, baladas, transadas ou qualquer outro programa que ele desejasse. Em vez disso, ele tinha era escolhido a “deselegância discreta” de uma paulista.

Relembrar tudo isso remete a outra questão mais profunda: a de que sempre necessitei ser aceita e amada. E o tratamento de princesa que recebia cegava meus olhos para todo o resto e enchia o meu coração de esperanças.

Nelson me deu os maiores presentes que se pode almejar. E também as maiores desilusões que se pode sofrer. Me levou do paraíso ao inferno. Roubou a minha alegria, o viço da minha pele, o brilho dos meus olhos.

Plantou a semente de dois filhos que vingaram lindos, brilhantes e saudáveis, para depois dividir a nossa família em tantos pedaços que nem a eternidade poderia juntar.

Fez promessas que não poderia cumprir. Despertou o melhor e o pior de mim numa relação marcada pela incompatibilidade de sentimentos. Amor e ódio. Perdão e vingança. Lealdade e traição. Admiração e desprezo. Coragem e covardia.

Nelson me ensinou, entretanto, a maior das lições: que ninguém pode exigir amor quando não ama a si próprio.


Ménage à trois

Alguém um dia me disse que, se plantarmos duas árvores iguais no mesmo terreno, uma delas fatalmente acabará fazendo sombra à outra. Eu vou mais além: se uma delas for mais forte sugará toda a seiva da terra, a água da chuva e o calor do sol. A outra sucumbirá.

Um outro exemplo são algumas mães que acabaram de parir. Magrinhas, pálidas e apáticas. Seus bebês, no entanto, são gorduchos, corados e cheios de energia porque, ainda dentro do útero, aproveitaram todas as vitaminas que o sangue da mãe podia oferecer.

Leis da natureza e sobrevivência!

Meu casamento já começou errado. Costumo brincar, me referindo a ele como uma ménage à trois, com sexo a deux. Um relacionamento a três, fadado ao fracasso desde o início. Qualquer pessoa com um pouco de bom senso poderia perceber que não ia dar certo. Minha mãe era uma delas, mas não lhe dei crédito. Ignorei seus conselhos, que sempre foram sábios. Achei que era puro ciúme.

Peguei minhas mochilas e mudei para o Rio de Janeiro, porque essa foi a principal condição do meu escolhido: não abriria mão de sua cidade.

Com o passar do tempo, constatei que ele não abriria mão de nada em sua nova vida de casado - principalmente da mãe. Fomos morar na mesma casa que ele ocupava quando solteiro.

- Minha mãe já está velha e não tenho condições de sustentar duas casas. Asilo, nem pensar, depois de tudo o que ela fez por mim - esse era o seu argumento, todas as vezes que eu sugeria que deveríamos ter o nosso canto.

“Minha” nova casa era uma miscelânea de móveis e objetos usados e corroídos pelos anos de uso. De novo, mesmo, só os móveis do quarto de casal. Fogão azul, armário branco, geladeira vermelha, piso verde...

Coleções de vidros vazios, lembrancinhas, tralhas velhas (minha sogra tinha a mania de não jogar nada fora). Nada combinava com nada. Eu não tinha sonhado com luxo ou riqueza, mas aquilo era surreal demais!

- Tudo bem. Vamos comprando aos poucos - assim ele me consolava a cada reclamação.

Mas isso era nada diante do que ainda estava por vir. Minha sogra era a árvore mais forte do terreno, com raízes sólidas e tronco habituado às inclemências das estações. Diante dela eu não passava de um brotinho de árvore, recém-saído da terra, frágil e insignificante.

Ela nunca se casou. A frustração de não ter um companheiro acabou por transformá-la numa pessoa amarga e invejosa, disposta a compensar essa desilusão provando a todos o quanto era boa em tudo o que fazia.

Não demorou para declarar aberta a competição entre nós. Cozinhava as comidas preferidas do filho, lavava e passava suas roupas, encobria seus deslizes e escapadelas, cuidava dos mínimos detalhes de tudo, sem dar espaço para que pudéssemos imprimir nosso próprio ritmo de vida e nem tomar as rédeas do nosso casamento.

Por outro lado, demitia minhas empregadas, vasculhava meus armários, remexia minhas bolsas, ouvia minhas conversas telefônicas, monitorava meus amigos, falava mal de mim para os vizinhos e, sempre que podia, envenenava meu marido contra mim, sutilmente.

Ele se fazia de desentendido. Ficava em cima do muro, porque era mais cômodo não tomar partido do que abrir mão dos paparicos da mãe, ou vê-la desfiar o seu infinito rosário de chantagens emocionais que – apesar de previsíveis – sempre conseguia desarmá-lo.

Era uma alegria tão grande a cada round vencido, que ela nem se dava o trabalho de disfarçar a sua satisfação. Algumas vezes sussurrava desafios ao meu ouvido com arrogância:

- Não falei que ia mandar sua empregada embora? E agora, o que você vai fazer? Vai chorar para o “maridinho”?

Suportar tantas provocações era demais para quem foi ensinada a não enfrentar os mais velhos. Engolir tanta injustiça sem ter como me rebelar, a princípio me deixou sem ação e, aos poucos, foi minando toda a minha emoção e afetividade. Comecei a adoecer, perder a auto-estima, duvidar da minha capacidade.

O mais difícil era compreender por que alguém sentia tanto prazer em destruir o relacionamento do próprio filho. E por isso eu não acreditava mais no ser humano. Na vida. No amor.

Tive que aprender a ser diferente, omitir palavras, dissimular intenções, esconder sentimentos. Já não me reconhecia. Na verdade, agora eu era duas pessoas: uma que só eu conhecia e outra, que as pessoas pensavam conhecer.

Acuada e sem chances de vencer uma disputa tão desleal, passei a usar o único trunfo que tinha para poder abatê-la: a cama.


Um parênteses

Preciso explicar que nem tudo foi tristeza em tanto tempo de vida em comum com meu ex-marido. Tivemos nossos bons momentos, mas não sei se posso chamá-los de felicidade.

Desde que nos conhecemos, apesar da euforia de romance, um discreto alarme me enviava fracos sinais de perigo. Algo soava falso sem que eu pudesse detectar exatamente o que era.

Alguns dias antes do casamento, estendi o vestido branco sobre a cama do meu quarto e tive uma súbita e incontrolável crise de choro. Minha mãe, que nunca escondeu a sua desaprovação à minha escolha, ficou aflita:

- Filha, o que está acontecendo? Você está arrependida? Se estiver, ainda dá tempo de cancelar tudo isso. Tem alguma coisa nesse moço que não me agrada...
- Não, mãe. Está tudo bem. Nem sei porque estou chorando.

Mais uma vez a afastei de mim. Ignorei minhas intuições, enxuguei as lágrimas e entrei na igreja, três dias depois.

Anos mais tarde ainda me lembraria dessa cena, arrependida por ter não ter aberto meu coração e pedido ajuda.


Entre fraldas e mentiras

O primeiro filho chegou. Ao invés de unir a família, como sempre acontece, dividiu. Agora a competição se estendia também ao bebê, e a avó precisava provar que só ela era capaz de cuidar e entender as necessidades dele. A tormenta se repetia.

Gustavo cresceu cheio de doenças, manias e acostumado a ter tudo o que queria. Eram duas mulheres girando ao seu redor feito mariposas que precisam de luz. Ela, de aprovação. Eu, de amor.

Em pouco tempo, o meu marido passou a fazer “serões” durante a semana e a dormir fora todas as quartas e sextas-feiras. Despreparado para enfrentar os conflitos, fugia de casa sempre que possível.

Com o pretexto de que precisávamos de dinheiro extra para comprar a minha tão sonhada casa, conseguia me manter calada e submissa. No meu íntimo, o antigo alarme soava (agora, sem parar e cada vez mais alto), mas eu precisava acreditar que as coisas iriam mudar.

Foi nessa época que começaram as viagens a trabalho nos finais de semana.

- Sabe como é... a empresa paga dobrado aos sábados e domingos. Não podemos desperdiçar essa chance – ele se justificava, entusiasmado.

Nada nos faltava, mas o tal dinheiro e a nova casa não apareciam.

Impotente, eu começava a me sentir cada vez mais desamparada.


Entre fraldas e traições

Eu não era mais tão ingênua e deveria saber que um outro filho não mudaria tudo o que estava acontecendo. E mesmo correndo perigo, enfrentei uma nova gravidez, só que desta vez de risco, e um parto prematuro. Assim, chegou Ana Paula.

Com ela aprendi que filhos não foram feitos para consertar casamentos falidos. Filhos não mudam o caráter das pessoas. Filhos não seguram maridos ou esposas. Filhos só fortalecem uma relação se o amor for sólido e verdadeiro.

Parei de trabalhar para poder cuidar da minha filha em tempo integral e educá-la sem interferências. Enquanto ela crescia saudável e independente, eu via tudo desmoronar ao meu redor.

Recebia telefonemas anônimos a qualquer hora do dia ou da noite, encontrava recados estranhos na secretária eletrônica e até ameaças de morte. Quem ligava sabia meu nome, coisas sobre meus filhos, nossa rotina e endereço. As vozes eram sempre de mulher e diziam coisas sobre o meu marido:

- Aqui é uma amiga. Estou ligando pra te dizer que ele não vale nada, que ele tem uma outra mulher...
- Quem é você? - eu gritava, assustada - Por que está fazendo isso comigo? O que você quer?
- Se você quiser pegar o seu homem com a boca na botija, é só ir no Posto 5 da praia da Barra. Todo final de semana ele está lá com uma mulher que tem o mesmo nome que o seu...

Quando confrontado, ele ria, nervoso. Sempre tinha uma desculpa convincente, uma explicação conveniente, um álibi perfeito. Até que as provas reais foram aparecendo, porque a mentira nunca prevalece e nem pode ser sustentada indefinidamente.

Surgiram situações que não podiam ser rebatidas, descuidos que não podiam ser esclarecidos e testemunhas que não podiam ser compradas.

Veredicto: culpado.


Depressão e anjos da guarda

Os sintomas começaram brandos. Uma melancolia sem motivo, um desânimo vago, um choro que surgia do nada.

Depois veio a vontade de ficar calada, de não levantar da cama durante o dia inteiro, de cerrar as cortinas, de não ouvir vozes, de não tomar banho, de não pensar...

Passava as noites em claro e tinha pânico da luz do sol, como se fosse um vampiro. Ao amanhecer, desejava que alguém me cravasse uma estaca no peito ao abrir a porta do quarto. Viver tinha se tornado insuportável.

Mergulhei nas trevas da minha dor. E ela era enorme e infinita.

Não tinha forças para as menores tarefas. Não tinha paciência para os meus filhos. Passava horas olhando para o nada. A minha cabeça era um papel em branco. Meu coração, um buraco silencioso.

Os psiquiatras receitaram remédios, mas eles não davam conta da angústia que me consumia. O único alívio era a morte temporária que eles me proporcionavam, pois me faziam dormir dias e noites seguidos.

Meus filhos sofreram muito. Nessa época os papéis se inverteram e eles passaram a cuidar de mim. Aliás, eram os únicos que se importavam com o meu estado. Minha sogra ignorava completamente a minha doença e meu marido só aparecia em casa para tomar banho, mudar de roupa e deixar dinheiro.

- Abre a boca, mamãe... abre e toma tudo - pedia a pequena Ana Paula, com a mãozinha cheia de comprimidos. Era inacreditável que uma menina de apenas oito anos fosse capaz de controlar horários, dosagens e medicamentos com tanta precisão.
- Vamos tomar banho, mamãe - decretava o grandalhão Gustavo, enquanto ligava o aquecedor e experimentava a temperatura da água. Aos 15 anos ele era um menino forte, alto e brincalhão, que me amparava como se eu fosse uma criança.

Se anjos da guarda existem, eles eram os meus.


Terapia, trabalho e poesia

Nunca acreditei em terapeutas e psicólogos. Achava impossível que uma pessoa comum, que também tinha problemas, fosse capaz de ajudar a resolver os meus. Quanto preconceito!

Foi assim que cheguei, numa manhã de sábado, ao consultório da Dra. Angélica, no bairro do Catete. Elegante, moderno e bem decorado, mais lembrava um pequeno apartamento aconchegante do que um local de tratamento.

- Por que você demorou tanto a procurar ajuda? - perguntou a médica, com um olhar tão compenetrado que me senti despida.
- Porque fui obrigada a vir; não acredito em terapeutas - respondi com uma sinceridade desconcertante e disposta a irritá-la.

Ela riu. Seu riso era fácil e doce. Derrubava qualquer resistência. E fez com que me sentisse uma perfeita idiota arrogante.

Dra. Angélica era jovem, recém-saída dos seus 30 anos, morena, alta, bem vestida, competente. Tinha um casamento sólido e dois filhos adoráveis. Era delicada ao falar, firme em sua postura e nunca perdia o bom humor.

Com o passar dos meses nosso relacionamento foi se estreitando. Comecei a ansiar pelos dias de consulta, pelas nossas conversas francas, pelas descobertas que fazia a cada encontro. Bendita terapia!

Mais fortalecida, prestei prova para um concurso público e fui a quinta colocada entre 4.000 inscritos. Uma vitória e tanto para quem estava afastada há sete anos do mercado de trabalho.

Mas foi a poesia que acabou por me libertar das garras da doença. Definitivamente.

Voltar a escrever me purificou, trouxe à tona minhas emoções e recordações recalcadas. Foi a minha catarse e redenção.

É, tens razão!
Sou poeta, penso diferente.
E, por isso, me concedes indulgente
O teu magnânimo perdão...
Porque és superior,
Não te rebaixas ao mundo das confidências.
Tua vida é um modelo de racionalidade e
Decência, enquanto a minha
É pura ilusão...
Mas olha, confesso que não me arrependo
De ser tão tola como tu afirmas,
Pois vou vivendo os meus dias
E construindo as minhas rimas,
Enquanto sobrevives com tuas
Apologias.
Sou feliz no meu faz-de-conta,
Na minha redoma de vidro.
Antes sonhadora e ingênua,
Do que frio e sozinho como tu,
Em teu mundo sem colorido!

Aos 38 anos fui aceita como membro da Associação dos Poetas Cariocas e publiquei o meu primeiro livro. Não me lembro de ter recebido tantas flores em outra ocasião. Nem tantos telegramas. Nem tanto carinho e apoio.

Publicar um livro foi como parir um filho. Um sentimento único.

É claro que não faltaram tentativas para me fazer voltar ao limbo de onde havia saído com tanto sacrifício:

- Ela é o melhor eletrodoméstico que adquiri na vida - teria dito com sarcasmo o meu marido a uma amiga, que, indignada, retirou-se da festa.
- Não sei por que essa mania de escrever! Ainda mais essa coisa de poesia. Quanta bobagem! - teria comentado deselegantemente minha sogra, que por sinal era analfabeta, em alto e bom som, para que todos pudessem ouvir.

Nada disso empanou o brilho da minha noite.

Minha mãe, meu irmão e meus filhos estavam lá. Cercada por um amor verdadeiro e pelo orgulho que via em seus olhos, tive a certeza de que precisava continuar.

Eu não tinha o direito de desistir de mim.


Outro parênteses

A doença e a derrocada do meu casamento duraram cinco longos anos, recheados de brigas, desgaste e ofensas. Nós dois sabíamos que estávamos trilhando uma estrada sem volta.

Durante alguns períodos, sempre que me sentia mais forte, eu tentava conversar com meu marido sobre a nossa situação. Recordo da última vez que busquei uma conciliação:

- Você sabe que o nosso casamento acabou. Por que não resolvemos isso de vez, em vez de ficarmos vivendo de aparências?

E ele respondeu, ríspido, sem nem mesmo me olhar no rosto:

- Se você quiser ir, que vá, mas deixe os meus filhos. Aliás, nenhum juiz vai lhe dar a guarda dos meninos com a miséria que você ganha. E eu vou contar a eles que você é uma doente, viciada em remédios e que não tem condições de cuidar nem da sua própria vida.
Calei. O medo de ser considerada incapaz e perder as crianças revolvia as minhas entranhas. Ele tinha acertado o alvo em cheio.

Nunca sofri qualquer agressão física (meu marido era um homem muito elegante para chegar a isso). Nenhum hematoma, nenhuma marca roxa, nenhum olho inchado...

Ah, mas como sabia ser refinado para produzir ferimentos, desfechar golpes e pancadas emocionais! Minha alma estava repleta de cicatrizes. Algumas já fechadas e outras que ainda sangrariam por muito tempo.


A luz no fim do túnel

Maio de 1999. Tudo que eu queria era curtir o fim de semana em São Paulo e o aniversário de uma grande amiga. Tinha acabado de publicar o segundo livro de poesias alguns meses antes e estava quase curada da depressão.

Não tinha a menor idéia de que aquela comemoração mudaria o rumo da minha vida. Lá pelo meio da festa, uma das sócias do meu irmão arrastou-me para um canto:

- Precisamos de uma pessoa de confiança para cuidar dos nossos negócios. Sabemos que seu casamento vai mal e esta é sua grande chance de resolver esse impasse.
- E se eu aceitar? Vocês podem esperar até o final do ano?
- Negativo, querida. Podemos esperar até julho. É pegar ou largar.
- Mas são apenas dois meses... é meio de ano... como vou fazer com a escola dos meus filhos?
- Transfira os meninos, ora bolas. Se você perder essa oportunidade, pode ser que não tenha outra. Pense e responda rápido.

A empresa era grande. O salário oferecido era cinco vezes maior do que eu recebia como funcionária pública. Meu irmão havia comprado um apartamento e estava deixando vaga uma casa ao lado de minha mãe. Tudo conspirava a meu favor.

Voltei para o Rio de Janeiro apavorada. Procurei uma dupla de advogados indicada por uma amiga, especializados em família.

Lizandra e Leandro, nomes que mais pareciam o de uma dupla sertaneja, eram verdadeiros “pitbulls” quando se tratava de uma separação. Ficaram transtornados quando expliquei o que desejava: continuar usando o nome de casada, a manutenção do plano de saúde e que o apartamento do casal ficasse em regime de condomínio. Apenas isso.

- Mas e todos os outros bens? Carros, telefones, contas bancárias, eletrodomésticos, aplicações? Não acredito! Você vai deixar tudo para ele? Esse é um acordo ‘mamão com açúcar’! - Lizandra estava revoltada.

Pela primeira vez em anos, não houve qualquer hesitação:

- Só quero ir embora! Será que vocês não podem compreender isso? Nenhum lençol de bolinhas vai comprar a minha paz. Abro mão de tudo.


Aviso prévio

Era um sábado de manhã, uma semana depois da visita aos advogados. O tom decidido da minha voz fez com que farejasse a gravidade do pedido:

- Preciso falar com você. E tem que ser hoje. Vamos sair à noite porque não quero conversar aqui em casa! – eu adverti.
- Fale agora. Não vou esperar! – ele estava impaciente.

Ele me puxou pelo braço e trancou a porta do quarto.
Sentei-me aos pés da cama, tomando fôlego para dar a notícia:

- Estou saindo de casa no início de julho. Tive uma boa proposta de trabalho em São Paulo, tenho uma casa para morar, já contratei um advogado...

Fui vomitando as palavras, com medo de não dar conta de dizer tudo o que era preciso:

- Vamos chamar as crianças e explicar o que está acontecendo. Acho que eles já podem decidir com quem querem ficar.
- Eu não vou falar com ninguém! – ele gritou, acuado - É você quem quer essa separação.
- Está bem. Eu conto para eles – respondi, já me levantando apressada para evitar outra cena.

Antes de deixar o quarto, pelo canto dos olhos, vi com surpresa que ele estava chorando. Havia esperado muito por aquelas lágrimas, mas elas haviam chegado tarde demais.


Recados, mudança, despedida

A parte mais difícil coube a mim, naturalmente.

Os meus filhos choraram, espernearam, ficaram divididos. Afinal, era difícil escolher entre a mãe, o pai e a vida deles. Partiu meu coração ter que explicar que não podemos ter tudo o que desejamos.

Enquanto isso, o tempo passava feito um ciclone.

Ele não acreditou que eu iria embora (ou não quis acreditar). A fuga era típica de sua personalidade. Continuou fazendo planos, listas de compras de supermercado e marcando jantares e programas que nunca aconteceriam.

Durante um mês ignorou as caixas de papelão espalhadas pela sala, que aumentavam a cada dia, denunciando a iminente partida.

Não comentava sobre o guarda-roupas vazio, as marcas dos quadros que faltavam nas paredes e os potes de cremes desaparecidos do armário do banheiro.

Não mudou sua rotina. Levantava-se no mesmo horário todos os dias, ia para o trabalho e jantava em casa. Continuava reclamando das camisas mal passadas, do barulho dos vizinhos do apartamento de cima e das notas baixas do filho na escola.

Numa manhã, uma van veio e levou todas as caixas. Silêncio. Vazio.

Dois dias depois, dei o último recado para minha sogra. Ela, agora, também chorava, e era a única que tinha ficado para a despedida. Eu não perderia a oportunidade:

- Estamos indo e quero apenas te dizer uma coisa: se pelas leis da natureza você morrer antes de mim, não me chame para pedir perdão.

Sempre achei muito cômodo esse negócio das pessoas serem absolvidas no leito de morte por um Pai Nosso, uma Ave Maria e algumas gotas de água benta, depois de uma vida de desmandos. Eu precisava avisar que não voltaria para isso.

Vestindo a roupa do corpo, peguei minha filha pela mão e iniciamos a grande viagem de volta.


Trocando em miúdos ou resumo da ópera

Meu ex-marido hoje vive sozinho em uma cobertura em Copacabana. De frente para o mar, como sempre sonhou.

Temos um relacionamento cordial e eu diria que carinhoso até, em alguns momentos. Fizemos uma história. Se boa ou má, não dá pra dizer, mas é impossível ignorar duas décadas de vida em comum e os filhos maravilhosos que tivemos.

Minha sogra morreu em 2005. Nunca mais nos falamos, apesar dos seus inúmeros recados e pedidos de perdão, através dos meus filhos. Não a atendi, mas perdoei sinceramente. Não por ela, mas por mim.

Gustavo tem 27 anos e mora no nosso “ex”-apartamento, com a namorada e um cachorro. Não gosta de receber ordens e é um micro-empresário.

Ana Paula, aos 22 anos, ainda vive em São Paulo. Trabalha, faz faculdade, namora e faz planos de voltar para o Rio.

A propósito: casei de novo! E vou muito bem, obrigada. Errando aqui, acertando ali...

Não guardo mágoas. Não tenho ranços. Não perco o sono.

Arrependimentos? Alguns. Poderia ter feito melhor? Talvez. Planos? Muitos. Aos 52 anos, enquanto meus amigos se preparam para a aposentadoria, eu me sinto como um avião aquecendo as turbinas para a decolagem. Medos? Sim. Do efeito estufa, da guerra nuclear, da doença, da falta de água no planeta, da inveja e, principalmente, de baratas...

* Jornalista, professora e pós-graduanda em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário (www.abjl.org.br), turma São Paulo 2009.


Fonte: http://www.textovivo.com.br/detalhe.php?conteudo=fl20091116194816&category=autobiografica

Nenhum comentário: