terça-feira, 20 de abril de 2010

Relatório do PLANO PILOTO DE BRASILIA (Lúcio Costa)


... José Bonifácio, em 1823, propõe a transferência da Capital para Goiás e sugere o nome de BRASÍLIA.
Desejo inicialmente desculpar-me perante a direção da Companhia Urbanizadora e a Comissão Julgadora do Concurso pela apresentação sumária do partido aqui sugerido para a nova Capital, e também justificar-me.
Não pretendia competir e, na verdade, não concorro — apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta.
Compareço, não como técnico devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de escritório, mas como simples "maquis" do urbanismo, que não pretende prosseguir no desenvolvimento da idéia apresentada, se não eventualmente, na qualidade de mero consultor. E se procedo assim candidamente, é porque me amparo num raciocínio igualmente simplório: se a sugestão é válida, estes dados, conquanto sumários na sua aparência, já serão suficientes, pois revelarão que, apesar da espontaneidade original ela foi, depois, intensamente pensada e resolvida; se não o é, a exclusão se fará mais facilmente e não terei perdido o meu tempo nem tomado o tempo de ninguém.
A liberação do acesso ao concurso reduziu de certo modo a consulta àquilo que de fato importa, ou seja, à concepção urbanística da cidade propriamente dita, porque esta não será, no caso, uma decorrência do planejamento regional, mas a causa dele: a sua fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região. Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial. E o que se indaga é como, no entender de cada concorrente, uma tal cidade deve ser concebida.
Ela deve ser concebida não como simples organismo capaz de preencher satisfatoriamente e sem esforço as funções vitais próprias de UMA CIDADE MODERNA QUALQUER, não apenas como URBS, mas como CIVITAS, possuidora dos atributos inerentes a uma capital. E, para tanto, a condição primeira é achar-se o urbanista imbuído de UMA CERTA DIGNIDADE E NOBREZA DE INTENÇÃO, porquanto dessa atitude fundamental decorrem a ordenação e o senso de conveniência e medida capazes de conferir, ao conjunto projetado, o desejável caráter monumental. Monumental, não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa.
Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país.
Dito isto, vejamos como nasceu, se definiu e resolveu a presente solução:

1 – Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz (fig. 1)

2 – Procurou-se depois a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das águas, à melhor orientação, arqueando-se um dos eixos a fim de contê-lo no triângulo eqüilátero que define a área urbanizada (fig. 2).

Figuras 1 e 2

3 – E houve o propósito de aplicar princípios francos da técnica rodoviária — inclusive a eliminação dos cruzamentos — à técnica urbanística, conferindo-se ao eixo arqueado, correspondente às vias naturais de acesso, a função circulatória tronco, com pistas centrais de velocidade e pistas laterais para o tráfego local e dispondo-se ao longo desse eixo o grosso dos setores residenciais (fig. 3).

4 – Como decorrência dessa concentração residencial, os centros cívico e administrativo, o setor cultural, o centro de diversões, o centro esportivo, o setor administrativo municipal, os quartéis, as zonas destinadas a armazenagem, ao abastecimento e às pequenas indústrias locais, e, por fim, a estação ferroviária, foram-se naturalmente ordenando e dispondo ao longo do eixo transversal que passou assim a ser o eixo monumental do sistema (fig. 4).

Lateralmente à intersecção dos dois eixos, mas participando funcionalmente e em termos de composição urbanística do eixo monumental, localizaram-se o setor bancário e comercial, o setor dos escritórios de empresas e profissões liberais, e ainda os amplos setores do varejo comercial.

Figuras 3 e 4

5 – O cruzamento desse eixo monumental, de cota inferior, com o eixo rodoviário-residencial impôs a criação de uma grande plataforma liberta do tráfego que não se destine ao estacionamento ali, remanso onde se concentrou logicamente o centro de diversões da cidade, com os cinemas, os teatros, os restaurantes etc. (fig. 5)

6 – O tráfego destinado aos demais setores prossegue, ordenado em mão única, na área térrea interior coberta pela plataforma e entalada nos dois topos mas aberta nas faces maiores, área utilizada em grande parte para o estacionamento de veículos e onde se localizou a estação rodoviária interurbana, acessível aos passageiros pelo nível superior da plataforma (fig. 6). Apenas as pistas de velocidade mergulham, já então subterrâneas, na parte central desse piso inferior que se espraia em declive até nivelar-se com a esplanada do setor dos ministérios.

7 – Desse modo e com a introdução de três trevos completos em cada ramo do eixo rodoviário e outras tantas passagens de nível inferior, o tráfego de automóveis e ônibus se processa tanto na parte central quanto nos setores residenciais sem qualquer cruzamento. Para o tráfego de caminhões estabeleceu-se um sistema secundário autônomo com cruzamentos sinalizados mas sem cruzamento ou interferência alguma com o sistema anterior, salvo acima do setor esportivo e que acede aos edifícios do setor comercial ao nível do subsolo, contornando o centro cívico em cota inferior, com galerias de acesso previstas no terrapleno (fig. 7).

Figuras 5, 6 e 7

Fonte: http://doc.brazilia.jor.br/ppb/RelatorioLucioCosta.htm

(CONTINUA AMANHÃ)

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