Os medos cuja origem sabemos identificar podem perturbar-nos e
geralmente conseguem-no, mas transportam consigo o seu próprio antídoto.
Conhecendo as suas causas, identificando o seu rosto, podemos então
aprender a resistir-lhes, suavizando o seu embate ou, pelo menos,
estabelecendo com eles um pacto de reconhecimento e alguns momentos de
tréguas. No final dos anos 70, o historiador Jean Delumeau mostrou como é
possível compreender a vida coletiva de um longo período do passado
apenas pela observação do modo como aqueles que o habitaram souberam
lidar com os seus temores, convivendo com eles mas fazendo por
enfrentá-los. A opressão, a fome, a doença, os desastres naturais, a
insegurança, a guerra, aterravam os humanos, mas geralmente tinham um
rosto reconhecível, anunciavam a sua chegada e sabia-se como atuavam.
Por isso podiam ser, se não enfrentados, pelo menos aceites.
Os piores medos, porém, não têm rosto. Aparecem associados a esse
sentimento difuso, pouco claro, ambíguo e desarmante, que experimentamos
sempre que somos confrontados com algo que não sabemos identificar, ver
ou prever, reduzindo por isso a margem de manobra diante do perigo que
se pressente. É esta espécie de medo que nos acompanha poderosamente por
estes dias, quando somos forçados a conviver com uma imprevisibilidade
que começa nas palavras e nos atos desencontrados daqueles que agora nos
governam e que ousam falar em nosso nome. Como poderemos dormir
descansados, como podemos não experimentar o medo, quando os primeiros a
ameaçar-nos, a escalar as paredes das nossas casas e a entrar sem aviso
são justamente aqueles que foram por nós eleitos para cuidar da nossa
existência e gerir a paz das nossas noites? Já não os reconhecemos e por
isso os tememos tanto.
Fonte: http://www.aterceiranoite.org/
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