Porque nasci
na metade do século XX tive a sorte de conviver com pessoas que nasceram no
século XIX (como meu avô), com praticamente todas as gerações do século XX e
com as primeiras do século XXI que hoje estão na adolescência.
Minhas
lembranças da infância porque convivi com meus avós trazem traços muito fortes
de valores que vêm do século XIX, tais como lealdade, honra e a gratidão.
Temperei tudo isto com os delírios do século XX incrementados com as
desconstruções do século XXI.
Ouvi, vi e
vivi coisas incríveis. Vi ficção tornar-se realidade, a explicação das coisas
mudar de rota, da magia da fé para a racionalidade da ciência.
Num certo
momento tentei entender as coisas pelo viés das explicações teóricas. Muito me
ajudou aguçando o sentido de observação dos detalhes. Mas foi a sensibilidade a
minha cartilha por excelência. Talvez por isso eu me encante com o despojamento
dos memorialistas populares, me emocione com a poesia, me deslumbre com a
literatura, seja uma eterna apaixonada pela história e uma devota inconteste da
importância definitiva do longo prazo na construção do presente. As dinâmicas
das lutas entre as permanências e as mudanças me enfeitiçam.
Ganhei muito
mais ouvindo pedaços de conversas dentro dos ônibus, na rua, nas pequenas
reuniões que nas preleções vaidosas que pouco ou quase nada me deixaram.
Quando fiz 50 anos, depois de viver mais da metade da minha
vida - não acredito que chego aos 100 - decidi romper com as imposições do
circo. Deixei falar meu coração e dei a vez ao que realmente eu gosto. Não é fácil principalmente porque o enredo em
que vivemos já definiu o nosso lugar. Topei a parada. Despedi-me gloriosamente
da síndrome da onipresença. Para mudar, não se mexe só consigo mesmo mas impõe-se ao grupo a que se pertence a busca de novas estratégias de entendimento para manter a
harmonia do conjunto. Se você sobreviver, aí sim, você vai descobrir o que e
quem realmente lhe interessa ficar perto. É uma fase de descarte que se não
tiver coragem ou volta-se ao que era ou fica sequelado. A ousadia de encarar esse
desafio cobra um preço considerável mas eu não consigo imaginar o
amadurecimento longe desse processo de encontro consigo mesmo.
Aos 60, pode-se até repetir todos os seus equívocos mas dá
pra se divertir porque você já aprendeu que nada é definitivo nem perpétuo. Aí, é só cumprir os rituais do cotidiano e dar a cada coisa o seu
lugar. É um redescobrimento tão instigante que você só acredita que tem essa
idade porque a carteira de identidade está ali para te denunciar e os médicos e
a família estão no teu pé cobrando a atualização do check-up.
Eita vida boa e besta!
MLuiza
Recife, 04.09.2014
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