quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Eita vida boa e besta!






Porque nasci na metade do século XX tive a sorte de conviver com pessoas que nasceram no século XIX (como meu avô), com praticamente todas as gerações do século XX e com as primeiras do século XXI que hoje estão na adolescência. 
Minhas lembranças da infância porque convivi com meus avós trazem traços muito fortes de valores que vêm do século XIX, tais como lealdade, honra e a gratidão. Temperei tudo isto com os delírios do século XX incrementados com as desconstruções do século XXI.
Ouvi, vi e vivi coisas incríveis. Vi ficção tornar-se realidade, a explicação das coisas mudar de rota, da magia da fé para a racionalidade da ciência.
Num certo momento tentei entender as coisas pelo viés das explicações teóricas. Muito me ajudou aguçando o sentido de observação dos detalhes. Mas foi a sensibilidade a minha cartilha por excelência. Talvez por isso eu me encante com o despojamento dos memorialistas populares, me emocione com a poesia, me deslumbre com a literatura, seja uma eterna apaixonada pela história e uma devota inconteste da importância definitiva do longo prazo na construção do presente. As dinâmicas das lutas entre as permanências e as mudanças me enfeitiçam.
Ganhei muito mais ouvindo pedaços de conversas dentro dos ônibus, na rua, nas pequenas reuniões que nas preleções vaidosas que pouco ou quase nada me deixaram. 
Quando fiz 50 anos, depois de viver mais da metade da minha vida - não acredito que chego aos 100 - decidi romper com as imposições do circo. Deixei falar meu coração e dei a vez ao que realmente eu gosto.  Não é fácil principalmente porque o enredo em que vivemos já definiu o nosso lugar. Topei a parada. Despedi-me gloriosamente da síndrome da onipresença. Para mudar, não se mexe só consigo mesmo mas impõe-se ao grupo a que se pertence  a busca de novas estratégias de entendimento para manter a harmonia do conjunto. Se você sobreviver, aí sim, você vai descobrir o que e quem realmente lhe interessa ficar perto. É uma fase de descarte que se não tiver coragem ou volta-se ao que era ou fica sequelado. A ousadia de encarar esse desafio cobra um preço considerável mas eu não consigo imaginar o amadurecimento longe desse processo de encontro consigo mesmo.
Aos 60, pode-se até repetir todos os seus equívocos mas dá pra se divertir porque você já aprendeu que nada é definitivo nem perpétuo. Aí, é só cumprir os rituais do cotidiano e dar a cada coisa o seu lugar. É um redescobrimento tão instigante que você só acredita que tem essa idade porque a carteira de identidade está ali para te denunciar e os médicos e a família estão no teu pé cobrando a atualização do check-up.
Eita vida boa e besta!
MLuiza
Recife, 04.09.2014

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