terça-feira, 25 de março de 2014

Pulseira eletrônica




(Pedro Rolo Duarte)

Aqui entre nós, que ninguém nos ouve, tenho a sensação de que o nosso mundinho anda histérico. Quando digo “o nosso mundinho”, quero dizer a mediania da sociedade urbana, falida ou apenas remediada, que ainda assim não dispensa o smartphone, a ligação permanente à net, as redes sociais, e pelo menos um jantar por semana, no restaurante, com os amigos - os que restam disponíveis sem a frase da “moda”: “não vou jantar, mas apareço para o café”…
Às vezes o cartão de crédito resiste e guincha (o vosso, não sei: o meu, desata aos gritos, esgotado que está…), mas há uma qualquer loucura instalada que leva a maioria a entrar em estado de negação. Confesso: já passei por esse estado, mas passou-me depressa. Agora estou na fase do confronto - ou talvez seja melhor dizer, da depressão?
Voltemos ao tal mundinho histérico.
Pensava nele, e nesta absurda forma de viver que adoptámos, entre a realidade e a ficção, entre o que julgamos ser e o que efectivamente temos, quando alguém me veio falar de FOMO. “Sabes o que é FOMO?”, perguntaram-me. Achei que seria uma nova aplicação para smartphone - app, se me faço entender… -, mas a proximidade à palavra “fome” levou-me a admitir que pudesse ser uma tendência nos ginásios. Ou uma variação de tofu nos restaurantes vegetarianos. Não, nem uma coisa nem outra.
FOMO é “apenas” mais uma nova pancada social que não tarda será patologia certificada por psiquiatras e psicólogos e dará baixas médicas (se ainda houver baixas num futuro próximo…), e explicará recurso a fármacos de ultima geração, além de inesperadas mortes de famosos ou aspirantes. FOMO são as iniciais de “Fear Of Missing Out”. Quer dizer: medo de estar a perder qualquer coisa, medo de estar fora da rede, medo de estar “out”… Aplica-se a todos os que ficam angustiados, stressados, doentes, por estarem temporariamente “desligados” das redes sociais, da net, dos telefones, e por esse facto poderem estar a perder algo potencialmente relevante. Como um pedido de amizade de um desconhecido ou um post irrelevante sobre a “obra da prima do mestre de obras”, para usar uma parvoíce popular.
Imaginemos um casal romântico nas profundezas do Alentejo, talvez no famigerado Pulo do Lobo, que Cavaco Silva celebrizou, onde a rede de telefone escasseia e os velhos cabos telefónicos não chegam. Repentinamente, os dois apercebem-se que estão “fora da rede”, ou seja, fora do seu mundinho sem história, mas cheio de gente e de “citações” e fotografias com animais, e “likes”, e “smiles”, e “cenas”. Ui, “estamos sem rede, amor?”. Quem quer viver sem rede numa vida que é em si mesma o abismo?
(Claro que a história podia ser outra: aproveitar a circunstancia para olhar nos olhos do outro, para ver o mundo límpido e transparente, sem ruído nem interferências. Talvez voltar a viver como sempre se viveu? Talvez repensar esta histeria informativa que nos põe a todos de volta do mesmo, seja Ronaldo ou uma frase infeliz de um político, uma infidelidade ou um programa de televisão, numa espiral sem fim de banalidade e irrelevância. Mas não, a história dos dias actuais é outra).
Imagino o casal a deixar o Pulo do Lobo lá na memória fotográfica de uma cascata de água insignificante, e aproximar-se de Mértola para curar o FOMO que subitamente o assaltou…
Eu não disse que o nosso mundinho anda histérico? FOMO? Mas agora há FOMO? Mas agora há medo de perder um comentário a um post em que escrevemos qualquer coisa como “Eusébio, és grande!”; ou a fotografia da prima distante com os pés a chapinhar na água; ou a ultima revelação sobre a Casa dos Segredos?
E enquanto tudo isto acontece, uma grande superfície faz uma campanha de publicidade onde brinca com uma clássica frase portuguesa. Dizia-se “um copo de água não se nega a ninguém”. A dita marca recriou: “um copo de água e a password do wifi não se negam a ninguém”. Claro, é o FOMO em acção…
Haver quem se tenha dado ao trabalho de criar uma sigla que traduz “Fear of Missing Out”, diz muito sobre o mundo a que chegámos. Saudável, não é. Civilizado, menos. Dependente? Muito. Preso? Absolutamente. Não são eles, os condenados em tribunal - somos nós, os livres, que estamos afinal presos a uma pulseira electrónica. Amarrada às nossas vidas. Poderia haver maior paradoxo e, ao mesmo tempo, melhor imagem do tempo que vivemos?
Fonte: http://pedroroloduarte.blogs.sapo.pt/

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