Tidas como protagonistas do movimento que depôs
João Goulart, organizações femininas lideradas por mulheres de classe
média eram, na verdade, financiadas e instruídas pelos homens da elite
empresarial-militar que queriam derrubar Jango
Há 50 anos, em 19 de março de 1964, era realizada na cidade de São
Paulo a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Estima-se que entre
500 mil e 800 mil pessoas partiram às 16h da Praça da República em
direção à Praça da Sé, no centro, manifestando-se em resposta ao
emblemático comício de João Goulart, seis dias antes, defendendo suas
Reformas de Base na Central do Brasil. Passaram à história como as
genuínas idealizadoras e promotoras da marcha organizações femininas e
mulheres da classe média paulistana. No entanto, por trás deste aparente
protagonismo feminino às vésperas do golpe que deu lugar a 21 anos de
regime ditatorial, esconde-se um poderoso aparato financeiro e logístico
conduzido por civis e militares que tramavam contra Jango. Um detalhe:
quase todos eram homens.
Leia também: Golpe de 64: saiba como o Ipês desestabilizava o governo Jango
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Certamente, a atuação de alguns grupos femininos como “pontas-de-lança”
da opinião pública contra o governo Goulart foi peça-chave na
conspiração levada a cabo pelo complexo empresarial-militar do Ipês-Ibad
(Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – Instituto Brasileiro de
Ação Democrática). Destas instituições femininas, as principais eram: a
carioca CAMDE (Campanha da Mulher pela Democracia) e as paulistas UCF
(União Cívica Feminina) e MAF (Movimento de Arregimentação Feminina).
Conforme disseca a historiadora Solange Simões em seu livro Deus, Pátria e Família: As mulheres no golpe de 1964,
a inserção das mulheres na conspiração que resultou no golpe foi
estratégica. Com o intuito de fomentar uma atmosfera de desestabilização
política e convencer as Forças Armadas a intervir, as campanhas
femininas buscavam dar "espontaneidade" e "legitimidade" ao golpismo,
tendo sido as mulheres incumbidas — pelos homens — de influenciar a
população.
“Aqueles homens, empresários, políticos ou padres apelavam às mulheres
não enquanto cidadãs, mas enquanto figuras ideológicas santificadas como
mães”, escreve a pesquisadora. A própria dona Eudóxia, uma das
lideranças femininas, reconhece, em entrevista à historiadora, sua
função tática:
Nós sabíamos que como nós estávamos
incumbidas da opinião pública, os militares estavam à espera do
amadurecimento da opinião pública. Porque sem isso eles não agiriam de
maneira nenhuma. A não ser que a opinião pública pedisse. E foi isso que
nós conseguimos.
Graças a uma bem-sucedida ação, eventos considerados aparentemente
“desconexos” foram tomados como "reações espontâneas" de segmentos da
população. Na verdade, essas manifestações apresentavam uma sólida
coordenação por parte da elite.
Reprodução/Blog CPDOC Jornal do Brasil
Protagonismo feminino? Mulheres estavam na linha de frente da marcha, mas quem dirigiu e organizou foram os homens do Ipês
Neste sábado (22/03), 50 anos depois, haverá uma reedição da emblemática marcha,
organizada por manifestantes e ativistas que acreditam haver no Brasil
uma revolução comunista em processo e veem na intervenção militar a
única saída.
Veja abaixo os principais aspectos desse movimento feminino que esteve à
frente da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” de 19 de março de
1964.
1.) COMO SURGIU E QUEM LIDERAVA?
Quem eram, afinal, essas mulheres que despontavam na rua, em passeatas e
comícios, como “donas-de-casa” e “mães-de-família brasileiras”,
envolvidas na conspiração civil-militar? Já chamadas de “guerrilheiras
perfumadas” ou confundidas com mulheres “das classes médias”, as
direções dos movimentos eram constituídas, essencialmente, por mulheres
com baixa formação intelectual da burguesia e das elites militares e
tecnoempresariais.
Essa ala feminina do golpe foi criada meses antes das eleições gerais de outubro de 1962.
Suas principais líderes eram parentes próximas dos grandes nomes do
setor empresarial e militar envolvidos na conspiração. Contaram,
obviamente, com todo o aparato financeiro e logístico de seus cônjuges,
primos e irmãos para erguer suas instituições. “O meu marido me
incentivava: ‘Eu ajudo no que precisar’, dizia ele”, relembra em
entrevista concedida a Solange Simões, a vice-presidente da CAMDE,
Eudóxia Ribeiro Dantas, mulher de José Bento Ribeiro Dantas, empresário
ipesiano presidente da Cruzeiro do Sul, uma das maiores companhias
aéreas do país.
Leia também: Elite econômica que deu golpe no Brasil tinha braços internacionais, diz historiadora
Já em São Paulo, nas reuniões de fundação da UCF, compareceram figuras como: Antonieta Pellegrini, irmã de Júlio de Mesquita Filho, diretor-proprietário do jornal O Estado de S.Paulo,
e Regina Figueiredo da Silveira, primeira presidente da união paulista e
irmã do banqueiro João Baptista Leopoldo Figueiredo, presidente do Ipês
e primo do último presidente do ciclo militar.
2.) EM TERMOS PRÁTICOS, O QUE FIZERAM?
Desde sua fundação, a CAMDE carioca e a UCF paulista se engajaram na
ação política de combate e desestabilização do governo Goulart,
orientadas ideologicamente e materialmente pelo complexo Ipês-Ibad.
“Caravana a Brasília”: pelo veto a Santiago Dantas
Em 1962, as mulheres organizaram uma “Caravana a Brasília” com o
objetivo de formar um efetivo “coro popular” para impedir a posse de San
Tiago Dantas como primeiro-ministro. Esse movimento integrava parte da
política de rejeição, pela elite, de uma composição com a ala moderada
do trabalhismo. Para tanto, entregaram ao presidente da Câmara, Ranieri
Mazzilli, 60 mil cartas pedindo a não aprovação do plebiscito
antecipado, bem como o impedimento da delegação de poderes ao conselho
de ministros, fundamental à continuidade das Reformas de Base do governo
Goulart.
Reprodução/Mestrado Dharana Pérola Ricardo Sestini
A primeira-dama de SP, dona Leonor de Barros (cent.), ladeada pelos deputados Herbert Levy (últ. à dir.) e Cunha Bueno (penúlt. à dir.)
Boicote ao Última Hora, o “diário da guerra revolucionária”
Um dos poucos jornais que se atreveram a criticar a tentativa de
deturpar o processo eleitoral por parte dessas organizações femininas, o
Última Hora, de Samuel Wainer, foi sistematicamente perseguido
pela CAMDE e UCF. Caracterizando o periódico como “o diário da guerra
revolucionária que se travava no Brasil”, as senhoras passaram a formar
comissões de visitas a empresários, industriais e comerciantes que
anunciavam no jornal, pedindo para que suas verbas publicitárias fossem
suspensas. A coordenação dessa campanha de boicote foi feita em grande
parte em sincronia com o Ibad, liderado pelo integralista Ivan Hasslocher,
outra figura central na campanha anti-Jango. Hasslocher se exilou em
Genebra depois de comprovados, pela CPI (Comissão Parlamentar de
Inquérito) de 1963, os atos de corrupção de seu instituto no processo
eleitoral de outubro de 1962.
"Marchas da Família com Deus pela Liberdade": quem convocou, dirigiu e financiou
Logo após o discurso de Goulart na Central do Brasil,
em 13 de março de 1964, a CAMDE se engajou em campanhas por telefone,
incitando as mulheres a permanecerem em casa e acenderem velas em suas
janelas como sinal de protesto e fé cristã. A massiva “Cruzada do
Rosário em Família”, do padre norte-americano Patrick Peyton,
pároco de Hollywood, foi o ensaio-geral para as marchas anticomunistas
de abril e março de 1964, fundadas no lema “A família que reza unida
permanece unida”.

["Marcha da Família com Deus pela Liberdade" percorre o Viaduto do Chá, no centro de São Paulo]
A marcha reuniu entre 500 mil e 800 mil pessoas para protestar contra o
comício de Goulart na Central do Brasil. A idealização da marcha partiu
do deputado federal Antônio Sílvio Cunha Bueno (PSD), um grande
proprietário de terras e diretor da norte-americana Willys-Overland
Motors do Brasil, cuja matriz ficou famosa pela fabricação, em parceria
com a Ford, do jipe usado pelos norte-americanos na Segunda Guerra
Mundial. Ao contrário da propagandeada supervalorização do papel dessas
mulheres na condução dos protestos, a organização da marcha não ficou a
cargo nem da UCF nem do MAF, ambas entidades sediadas em São Paulo. Quem
levou o evento adiante foi o próprio Cunha Bueno, além de outros
políticos paulistas, como o vice-governador Laudo Natel, Roberto de
Abreu Sodré (UDN) e Conceição da Costa Neves (PSD), deputada mais votada
no estado nas eleições de 1962.
Leia: AI-5 já era debatido cinco meses antes, opondo Costa e Silva e presidente Médici
Acompanhados de suas esposas, políticos importantes se fizeram
representar nas marchas: Adhemar de Barros e sua mulher, dona Leonor;
além de Carlos Lacerda, governador do Rio, e dona Letícia. O deputado
Herbert Levy, integrante da UDN e líder do Ipês, bradava: “o povo não
quer ditaduras, o povo não quer comunismo, o povo quer paz e progresso”.
Cunha Bueno discursava: “Todos vocês nessa praça representam a pátria
em perigo de ser comunizada. Basta de Jango!”.
Em São Paulo, os banqueiros Hermann Morais Barros (Banco Itaú), Teodoro
Quartim Barbosa (Comind) e Gastão Eduardo Vidigal (Banco Mercantil),
líderes ipesianos do primeiro escalão, ficaram incumbidos de articular e
obter adesão das entidades de classe de todo o país para as marchas.
“O Ipês de São Paulo também fez contribuições diretas e em dinheiro
para o movimento feminino: consta do relatório de despesas de 1962 e do
orçamento de 1963 uma contribuição mensal para a UCF”, conclui a
historiadora Solange Simões.
A organização logística da marcha foi feita no prédio da Sociedade
Rural Brasileira, supervisionada pelo Ipês e contando com a presença de
membros de diversas entidades patronais e associações industriais. No
bem aparelhado quartel-general do movimento feminino fizeram-se ainda
pôsteres, cartazes e bandeiras com as seguintes palavras de ordem:
Abaixo o Imperialismo Vermelho
Renúncia ou Impeachment
Reformas sim, com Russos, não
Getúlio prendia os comunistas, Jango premia os traidores comunistas
Vermelho bom, só o batom
Verde, amarelo, sem foice nem martelo
Reprodução/Blog CPDOC Jornal do BrasilRenúncia ou Impeachment
Reformas sim, com Russos, não
Getúlio prendia os comunistas, Jango premia os traidores comunistas
Vermelho bom, só o batom
Verde, amarelo, sem foice nem martelo

Cartaz na marcha estampava "Vitória da Democracia"; golpe que derrubou presidente eleito viria semanas depois
3.) HOUVE PROTAGONISMO FEMININO?
Uma vez vitorioso o golpe de Estado de 1º de abril de 1964, foi
deflagrada a chamada “Marcha da Vitória”, reunindo 1 milhão de pessoas
no Rio de Janeiro. Logo no dia 3 de abril, o líder do Ipês João Baptista
Leopoldo Figueiredo, que estava em reunião na Guanabara na qual
discutiam a escolha do “novo candidato” à presidência,
telefonou para sua irmã Regina Figueiredo Silveira, presidente da UCF.
Motivo: o banqueiro primo-irmão do último presidente militar solicitava à
irmã-ativista que o lançamento da candidatura de Castello Branco fosse
feito pela própria UCF.
Paulo Ayres Filho, outro líder ipesiano e empresário
da indústria farmacêutica, ficou incumbido de elaborar, junto com uma
equipe da UCF, o manifesto feminino de apoio ao marechal, levado às
estações de TV e jornais pelas senhoras.
O general Olympio Mourão Filho, que marchou de Minas Gerais em 31 de
março, antecipando-se ao plano dos conspiradores do eixo Rio-São Paulo,
comentou, sobre as marchas das mulheres, que “como todos os homens que
participaram da revolução, nada mais fez do que executar aquilo que as
mulheres pregavam nas ruas para acabar com o comunismo”. Cordeiro de
Farias foi ainda mais longe, de acordo com Solange Simões, “ao afirmar
que a revolução foi feita pelas mulheres”.

Generais que participaram do golpe de 64 exergam protagonismo feminino como ponto central para o sucesso do movimento
Historiadores que estudaram o período são mais céticos: não veem a
movimentação das mulheres como sintoma do engajamento universal da
população brasileira no combate a Jango. Na verdade, essas mulheres,
teriam funcionado como massa de manobra dos conspiradores — todos homens
— para criar uma sensação de “espontaneidade” e “clamor popular” apta a
dar “legitimidade” ao novo governo. Como aponta a pesquisadora Solange
Simões, a marcha foi “ostensivamente uma manifestação das classes média e
alta”. E mais: foi muito restrita, pois em uma cidade de 6 milhões de
habitantes, como São Paulo, apenas 500 mil pessoas participaram.
Até o embaixador norte-americano
no Brasil, Lincoln Gordon, notório por seu apoio ao golpismo, percebeu a
falta de apoio popular no movimento, conforme relata a Washington em um
telegrama de 2 de abril de 1964: “A única nota destoante foi a evidente
limitada participação das classes mais baixas na marcha”. Seu espião
militar no Brasil, o coronel Vernon Walter também atesta que, até a
realização das passeatas, havia um receio de que o movimento para
derrubar João Goulart fracasse por falta de apoio popular.
Desferido o golpe em 1º de abril, as marchas do Rio e São Paulo foram
seguidas de outras menores, organizadas pelas associações femininas em
Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre e Santos.
“Se antes os maridos enalteciam o papel de mãe e esposa para manter a
mulher no lar e discriminadas na esfera pública, passam agora a
enaltecer aquele papel para comprometê-la na ‘política’”, arremata
Solange Simões. Assim, revelando o ilusório protagonismo vislumbrado
pelo espetáculo dessas marchas de massivas mobilizações, “a
‘mulher-dona-de-casa’ que respeitava, no lar, a autoridade do chefe da
família, deveria, enquanto mulher-cidadã procurar a autoridade do Estado
– autoridade que residia principalmente no seu braço armado”, conclui a
historiadora.
(*) Principais fontes: René Armand Dreifuss (‘1964: A conquista do
Estado: Ação Política, Poder e Golpe de Classe’) e Solange de Deus
Simões (‘Deus, Pátria e Família: As mulheres no golpe de 1964)Fonte: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/34445/golpe+de+64+marcha+da+familia+com+deus+pela+liberdade+completa+50+anos
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