por Rui Rocha
Gabo já tinha publicado algumas obras.
Apesar disso, a vida corria-lhe com aperto, restrições e penúria.
Naquele ano de 1967, consumia-se no esforço de encontrar editor para o
novo livro. As portas, todavia, mantinham-se fechadas. Que era demasiado
longo. Que não era aquilo que as pessoas procuravam. Por essa altura,
na Argentina, Luis Herss concluíra um ensaio sobre os dez escritores
mais representativos da, assim se dizia, Nova Literatura. É possível que
no mesmo momento em que Herss abriu a porta do gabinete de Paco Porrúa
para lhe apresentar o seu trabalho, a milhares de quilómetros dali mais
uma porta de um editor se estivesse a fechar na cara de Gabo.
Servir-lhe-ia certamente de consolo saber que alguma coisa, chamemos-lhe
providência, se tinha já posto em marcha para alinhar os cordelinhos
que vão tecendo o futuro em proveito do seu enorme talento. Todavia,
esse ainda não era o tempo de Gabo. Para já, a única certeza que tinha
era que aquele livro tão grande era um grande livro. Tudo o resto, era
angústia. Paco Porrúa, esse conhecia já nove dos dez escritores
referidos por Herss. Quis conhecer o décimo. As rodas dentadas da
engrenagem que levariam Gabo ao sucesso continuavam a mover-se
lentamente. O contacto com Porrúa foi estabelecido, apesar das
dificuldades. Os trâmites burocráticos foram vencidos. A certa altura, a
luta de Gabo pela publicação do novo livro estava à distância do envio
do manuscrito pelo correio. Uma e outra vez tomamos o sucesso pela sua
manifestação no momento em que se concretiza. Como se não houvesse
caminho, pedras para desviar, dúvidas, escolhas dolorosas, fracassos e
redenções. Para um escritor a quem a roda da fortuna ainda não tinha
favorecido, o envio de um manuscrito com centenas de páginas pode
constituir um escolho quase insuperável. O custo do correio, do México
para a Argentina, pode ser bem mais do que aquilo que alguém pode pagar
quando no bolso tem apenas a fórmula mágica que permite dar sentido às
palavras e desorganizar o mundo. Foi preciso escolher. Para reduzir o
custo, o manuscrito seria dividido em duas partes. Seguiriam os
primeiros dez capítulos num primeiro envio. Depois, logo se veria. Mesmo
assim, era maior o peso da encomenda do que os pesos mexicanos que Gabo
tinha na carteira. Mercedes ficaria sem secador, vendido em estado de
necessidade a alguma vizinha para completar a importância necessária. À
saída dos correios, Mercedes não pode evitar um comentário: olha, Gabo, agora só faltava que a novela não prestasse...
Ao que parece, com a atrapalhação própria de quem pressente um encontro
com a história, no momento do envio Gabo trocou os volumes e acabou por
seguir, por engano, a segunda metade do livro. Tal não impediu que
Porrúa assumisse definitivamente as rédeas do futuro e que acelerasse os
passos necessários à publicação. O que lera bastara para se convencer
de que estava perante uma obra prima. Agora que Gabo perdeu a memória,
podemos até duvidar que as coisas se tenham passado exactamente assim.
Mas, se apreciamos o realismo mágico da escrita, não há motivo para não
acreditar que a magia da realidade tenha sincronizado o espaço, o tempo
e estas circunstâncias nos dias que precederam a publicação de Cem Anos
de Solidão. E que o facto de o livro não se ter perdido com a memória
do seu autor se deve, em boa parte, ao valor em pesos mexicanos do
secador de Mercedes.
Fonte: http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/
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