por Conceição Lemes
Faça um esforço de memória, tente voltar no tempo – 10, 15, 20 anos atrás. Compare com os dias atuais. Hoje certamente você vê nos espaços públicos — rua, escola, transporte coletivo — mais crianças, jovens e adultos com síndrome de Down.
Down não está aumentando, não, na população brasileira. A cada 700 nascimentos, um caso ocorre. Por ano, 10 mil crianças nascem com a síndrome no País.
– Por que então vemos mais pessoas com Down hoje em dia no Brasil? — muitos devem estar se perguntando.
Elas vivem mais e melhor devido a uma combinação de fatores: inclusão social, estimulação e atendimento multidisciplinar.
Explico. Antigamente, as pessoas com Down ficavam mais isoladas. Era comum mãe e pai esconderem a sua criança do mundo: vizinhos, amigos e familiares. Outras vezes eram os vizinhos, amigos e até familiares que evitavam chegar perto.
“Aos poucos, felizmente, isso está mudando”, observa a pediatra Patrícia Tempski. “Eu, você e os leitores do Blog da Saúde podemos ajudar a fazer a diferença nessas histórias de vida, desmistificando ideias erradas e estimulando a inclusão.”
Down não é uma doença, como muitos pensam, mas condição humana geneticamente determinada, que acontece principalmente na fecundação. Em vez de 46 cromossomos (unidade que contém nossas informações genéticas) em cada célula (23 do pai e 23 da mãe), a criança com Down possui 47; há um cromossomo21 amais, e isso a distingue das demais.
Down não tem preferência por sexo, raça, classe social, religião. A incidência é igual para qualquer raça, nível socioeconômico, religião, entre homens e mulheres.
Muitas pessoas com Down estudam, namoram, trabalham. Outras têm mais dificuldades, logo menos autonomia.
“Essa desigualdade de desenvolvimento depende de problemas associados, estimulação, educação e cuidados dispensados à criança”, explica a médica. “A inclusão social é muito maior com a estimulação e a melhoria do atendimento, que tem de ser multiprofissional.”
A doutora Patrícia trabalha com síndrome de Down desde o início da década de 1990, quando quase não se falava em equipe multidisciplinar. Mais precisamente há 21 anos. Ela foi responsável por organizar o primeiro ambulatório multidisciplinar no Paraná e um dos primeiros no Brasil. O do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em convênio com a Associação Reviver Down, em Curitiba.
Atualmente, trabalha no Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP – o IMREA–, que faz parte da rede Lucy Montoro.
Em 2012, integrou o grupo de especialistas que elaborou as Diretrizes para a Atenção à Pessoa com Síndrome de Down (na íntegra, no final). Pela primeira vez, o Ministério da Saúde se mobilizou para estabelecer condutas para atendimento desse grupo populacional. Uma vitória da sociedade que há muito demandava isso.
[Conceição Lemes quer investigar a invasão dos planos de saúde vagabundos no Brasil. Colabore!]
Blog da Saúde – Na prática, qual o significado das Diretrizes?
Patrícia Tempski – Pela primeira vez a gente tem um padrão de condutas para atender a pessoa com síndrome de Down em todas as faixas etárias – desde o recém-nascido até o idoso. Antes não se tinha. Cada serviço fazia o melhor que achava possível. Agora, qualquer serviço pode se guiar pelas Diretrizes, principalmente aqueles ligados ao SUS.
Blog da Saúde – O que elas trazem?
Patrícia Tempski – As melhores práticas de cuidado para atendimento das diferentes idades. Por exemplo, exames necessários em cada idade, especialistas que têm de consultar, vacinas indicadas além das previstas no calendário nacional, cuidados extras…
Importante: não só os profissionais e os serviços têm de segui-las, o cidadão tem o direito de exigi-las.
Em português claro. A partir de agora, você, mãe, e você, pai, podem exigir que o serviço de saúde atenda melhor o seu filho com Down conforme as recomendações previstas nas Diretrizes. É um marco. Um avanço nos cuidados da pessoa com Down. Uma vitória da sociedade.
Blog da Saúde – De onde partiu essa ideia?
Patrícia Tempski – É uma reivindicação antiga de pais e profissionais que trabalham com a síndrome de Down. Antes, o fato de não haver diretrizes fazia com que cada serviço ou profissional fosse por um caminho. Às vezes a família tinha sorte em encontrar um profissional com mais experiência de atendimento nessa população, mas às vezes não.
Agora, as Diretrizes permitem que os profissionais de todas as especialidades que trabalham com Down possam atender melhor os seus pacientes. As Diretrizes foram escritas para profissionais, mas a sua linguagem, bastante acessível à população geral, permite que sejam utilizadas também pela família.
Blog da Saúde – De quem foi a iniciativa?
Patrícia Tempski – Do Ministério da Saúde, compondo o programa Viver sem limites, lançado pela presidenta Dilma em 2011. O programa traça algumas metas para o atendimento de pessoas com todo tipo de deficiência. A população com Down se encaixa aí. Uma das metas do Viver Sem Limites é justamente melhorar o atendimento da síndrome de Down. Para isso, era indispensável construir diretrizes para o cuidado dessa população.
Portanto, havia, sim, uma demanda antiga da sociedade e surgiu o Viver Sem Limites. Foi nesse contexto histórico que surgiu a possibilidade de se construir as Diretrizes.
Blog da Saúde – Como isso se deu?
Patrícia Tempski – O Ministério da Saúde reuniu, em Brasília, profissionais experientes dos diferentes programas. Participaram também representantes de APAEs, da Federação Nacional de Síndrome de Down e de outras organizações não governamentais do movimento Down.
Esse grupo fez uma revisão de suas práticas, consultando a literatura mundial. Discutimos como cada serviço fazia aqui e o que era feito nas melhores instituições do mundo.
Aí, chegamos a um consenso sobre qual a melhor forma de cuidar da população Down nas diferentes idades. Este consenso passou por uma consulta pública, onde a sociedade teve acesso e possibilidade de sugerir aprimoramentos. As Diretrizes não são nada mais do que como cuidar de forma adequada a população Down nas diferentes idades. Elas já estão valendo e à disposição da sociedade.
Blog da Saúde – A quem se destinam?
Patrícia Tempski – Prioritariamente aos profissionais que atendem no SUS, mas também aos atuam nos serviços privados e à população em geral.
Blog da Saúde – A senhora trabalha há 21 anos com a síndrome de Down. Olhando para trás, o que mudou?
Patrícia Tempski – Quando eu comecei a trabalhar com Down no Ambulatório de Atendimento à Pessoa com Síndrome de Down do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), quase não se falava em equipe multidisciplinar. O nosso serviço foi um dos primeiros a trabalhar nesta modalidade. Foi feito um convênio entre o Hospital de Clínicas e a Associação Reviver Down. Foi algo inovador, porque uma mesma criança era atendida por vários profissionais de saúde, portanto vista sob diferentes olhares que eram complementares. Também a inclusão social e a autonomia são maiores hoje.
Blog da Saúde – Quais os ganhos do atendimento multidisciplinar?
Patrícia Tempski – Os pacientes ganham em autonomia, qualidade de vida, a inclusão é muito melhor.
Antigamente, eles ficavam muito isolados do convívio social. Hoje frequentam o ensino regular, os que têm condições estão inseridos no mercado de trabalho. Têm uma vida muito mais próxima do normal do que aquelas pessoas com Down que tinham a mesma idade há 20 anos.
A gente percebe também que a postura da própria sociedade hoje é bem diferente; há um melhor entendimento em relação às pessoas com Down.
A inclusão – é importante que todos saibam — não é benéfica apenas para as crianças, adolescentes e adultos com Down, mas também para a sociedade que os acolhe.
Blog da Saúde – Em que se beneficiam?
Patrícia Tempski – Na área da afetividade, as crianças com Down são superiores a nós. Ensinam-nos a ser mais carinhosos, perseverantes e tolerantes. Respeitando a deficiência do outro, aceitamos mais as nossas próprias. Além disso, são muito otimistas e bem humoradas. Alguns pais me perguntam se isso é mesmo verdade, pois algumas vezes seus filhos não são assim tão afetuosos. Respondo que essa afirmação não é uma regra, mas é uma característica bastante comum no Down.
Assim, aprendemos desde cedo a tolerância, a aceitar e respeitar o diferente, os diferentes ritmos de levar a vida, de aprendizagem…
Blog da Saúde – Ou seja, é bom, mesmo, para os dois lados.
Patrícia Tempski — Com certeza. A minha filha menor — na época, ela tinha 11 anos, agora, 14 — está numa escola que pratica a inclusão. Ela tem um coleguinha com Down. Outro dia perguntei: Como é quando vocês têm de fazer uma atividade em grupo? Vocês têm algum problema de tê-lo no grupo?
Ela me respondeu: “Não, todo mundo quer ficar com ele. A gente briga pra ver quem vai ficar com ele, de tanto que a gente gosta dele”. Nessa escola não existe segregação, porque há todo um trabalho no sentido de desmistificar ideias equivocadas.
Blog da Saúde – Por exemplo.
Patrícia Tempski — A síndrome de Down é uma condição humana geneticamente determinada. Não é uma doença em si. Doenças são as patologias associadas à síndrome de Down. Dentro desse entendimento, fica muito mais fácil entender e aceitar as pessoas com Down, pois essa síndrome é uma condição humana.
Nesse sentido, as Diretrizes são muito importantes. Além de ser um documento de cuidado, elas são um documento político, que firma essa posição de aceitação, direitos, equidade no tratamento e respeito. Pais e mães têm agora um paradigma para brigar pelos direitos de seu filho com Down, qualquer que seja a idade dele.
Blog da Saúde – Eu li as Diretrizes e elas salientam muito o momento em que o diagnóstico é dado à família. Gostaria que falasse um pouco sobre isso.
Patrícia Tempski – Com base no acompanhamento de quase mais de 2.500 pacientes de zero a 67 anos, eu garanto: a forma como o médico dá a notícia aos pais sobre o diagnóstico faz tremenda diferença, pode determinar o desenvolvimento da criança, pois tem impacto muito grande na aceitação, disposição e adesão ao tratamento adequado.
Tem ainda profissional que chega e diz: “Mãe, teu filho tem Down, não vai andar, não vai se vestir sozinho, não vai…”.
Além de desrespeitosa, a postura é equivocada. Ninguém tem condições de afirmar até que ponto uma criança progredirá. Além disso, tira a esperança da família, desencorajando-a a buscar tratamento adequado. Resultado: rouba desse filho o direito de desenvolver toda a sua potencialidade. Um crime.
Blog da Saúde – Como a notícia deveria ser dada aos pais?
Patrícia Tempski – Receber a notícia de que o seu bebê tem síndrome de Down é duro, sim. É algo que não se espera. Mas o médico pode ajudar a família a dar um novo significado à vinda desse filho e a ir à luta.
O diagnóstico nunca deve ser transmitido à mãe na sala de parto, mas sempre em ambiente tranquilo, idealmente apenas com o pai ou outro parente junto. É preciso deixá-la extravasar o sofrimento. Não há script, mas, com jeito e carinho, é vital abordar os seguintes pontos na primeira conversa:
– Mãe, examinamos seu bebê e ele tem características especiais. Já percebeu que o narizinho é chato, as orelhas pequenas, o pescoço gordinho atrás, as sobrancelhas juntinhas, o corpo mais mole e os olhinhos puxados? O nome disso é síndrome de Down. Síndrome é conjunto de sintomas. E Down, o nome do médico que descreveu a síndrome.
– A síndrome de Down não tem cura, mas tem tratamento e a família terá um papel muito importante.
– Down é a principal causa de déficit intelectual. Em cada 700 nascimentos, ocorre um caso. Por ano, são 10 mil no Brasil. A desigualdade de desenvolvimento das crianças que nascem com essa síndrome depende de doenças associadas, estimulação, educação e manutenção da saúde. Portanto, desde já, precisamos trabalhar juntas: quanto mais investirmos hoje em seu filho, mais qualidade e autonomia terá no futuro.
– Ninguém tem culpa por isso; nem você, mãe, nem você, pai. Down é um acidente genético.
Blog da Saúde – Até agora a senhora não usou a expressão portador de Down, que muita gente utiliza…
Patrícia Tempski — No meu entendimento, síndrome de Down não é algo que se carrega nas costas como mochila. Portanto, ela não é portadora de algo mas é um pessoa com características próprias.
Blog da Saúde – Voltando às Diretrizes. O atendimento multiprofissional deve envolver o quê?
Patrícia Tempski — Cada fase da vida precisa de cuidados específicos. Para que sejam adequados, não podem ser feitos por um só profissional. Cada serviço tem uma formação. Alguns têm na equipe fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e fonoaudiólogo. Outros, equipe mais ampliada, incluindo ondontólogo, educador físico, psicólogo, nutricionista, assistente social. Em qualquer formato, médicos e enfermeiros compartilham o cuidado com a equipe.
Blog da Saúde – A senhora menciona o educador físico e o assistente social. Por que os incluiu?
Patrícia Tempski — O assistente social é muito importante para assegurar e manter o atendimento, que demanda recursos financeiros. É quem apoiará a família no sentido de verificar o que eventualmente ela tenha e aqueles que virão da comunidade.
Quanto ao educador físico nós o incluímos porque a gente tem a ideia de que ele faça a promoção da saúde, mostrando a importância da atividade física na qualidade de vida das pessoas com Down e suas famílias. Tanto no desenvolvimento delas como um todo como na manutenção do peso.
Eu gosto de pensar em uma equipe multiprofissional cada vez mais expandida que inclua veterinário, pois os relatos de terapia com animais — a “pet-terapia” — são animadores. Defendo também a presença dos pedagogos na equipe multiprofissional por acreditar na visão de integralidade do ser humano.
Blog da Saúde – Quando começa o atendimento da criança com Down?
Patrícia Tempski – Já ao nascimento, quando a gente dá a notícia à família.
Blog da Saúde – Toda criança com Down apresenta algum atraso no desenvolvimento. Atualmente é possível medir a sua extensão?
Patrícia Tempski – Não. Nós nunca sabemos aonde cada paciente chegará, porque a potencialidade humana não pode ser medida num único olhar.
O que eu tenho como certeza é que todo o trabalho e investimento feitos na saúde e na educação da criança com Down geram no futuro mais autonomia, mais potencialidade.
Os jovens que tiveram estimulação global, cuidado mais integral, participaram da inclusão desde cedo, possivelmente estão melhores do que aqueles que não tiveram.
Por isso é fundamental aproveitar cada momento do dia para ensinar e a criança aprender. A boa mãe e o bom pai, além de não se envergonharem de mostrar o filho ao mundo, mostram o mundo ao filho, como afirmava o psicanalista Winicott.
Blog da Saúde – O que gostaria de dizer mais à mãe e ao pai com um filho Down?
Patrícia Tempski — Quanto mais você fizer hoje, melhor será a qualidade de vida dele no futuro. Estimule-o. Pratique inclusão social, tolerância e solidariedade. Todos nós sairemos ganhando.
Blog da Saúde – E aos profissionais de saúde e à própria sociedade?
Patrícia Tempski – Nós, profissionais de saúde, podemos fazer a diferença, desmitificando ideias erradas e estimulando a inclusão. Já as escolas regulares que aceitam crianças com Down merecem meus aplausos: vocês estão praticando inclusão, cidadania, tolerância e solidariedade de verdade.Apenas o discurso, se vem não acompanhado da prática, fica vazio.
Quanto a vocês, pai e mãe, não é porque seu filho é diferente e tem dificuldades que não será querido e feliz. Arregacem as mangas. Lutem pelos direitos dele. Todos nós — profissionais, pais e sociedade — devemos ser facilitadores de vivências e oportunidades que permitam que as pessoas Down atinjam o seu melhor potencial. Vale a pena!
Fonte:http://www.viomundo.com.br/blog-da-saude/saude/seu-filho-tem-down-patricia-tempski-recomenda-exija-que-seja-atendido-de-acordo-com-as-diretrizes-do-ministerio-da-saude.html
Você encontrará detalhes na publicação do Ministério da Saúde: Diretrizes de atenção à pessoa com Sindrome de Down. Disponível também na internet (download no Scribd)
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