![]() | ||
Zizinha entre Formiga e Djalma Santos - 1957 |
Quando acabou a etapa inicial do jogo
Brasil x Paraguai, o placar acusava um lírico, um platônico 0 x 0. Ora, o
empate é o pior resultado do mundo. O torcedor sente-se roubado no dinheiro da entrada
e inclinado a chamar os 22 jogadores, o juiz e os bandeirinhas de vigaristas.
Acresce o seguinte: — de todos os empates o mais exasperante é o de 0 x 0. Essa
virgindade desagradável e irredutível do escore já
humilhava o público e, ao mesmo tempo, o enfurecia.
Súbito, o alto-falante do estádio se põe
a anunciar as duas substituições brasileiras: — entravam Zizinho e Walter. Foi
uma transfiguração. Ninguém ligou para Walter, que é um craque, sim, mas sem a
tradição, sem a legenda, sem a pompa de
um Ziza. O nome que crepitou, que encheu, que inundou todo o espaço acústico do
Maracanã foi o do comandante banguense. Imediatamente, cada torcedor tratou de
enxugar, no lábio, a baba da impotência, do despeito e da frustração. O placar
permanecia empacado no 0 x 0.
Mas já nos sentíamos atravessados pela
certeza profética da vitória. Os nossos tórax arriados encheram-se de um ar heroico,
estufaram-se como nos anúncios de fortificante.
Eis a verdade: — a partir do momento em
que se anunciou Zizinho*, a partida estava automática e
fatalmente ganha. Portanto, público, juiz, bandeirinhas e os dois times podiam
ter se retirado, podiam ter ido para casa. Pois bem: — veio o jogo. Ora, o
primeiro tempo caracterizara-se por uma esterilidade bonitinha. Nenhum gol, nada.
Mas a presença de Zizinho, por si só, dinamizou a etapa complementar, deu-lhe
caráter, deu-lhe alma, infundiu-lhe dramatismo. Por outro lado, verificamos
ainda uma vez o seguinte: — a bola tem um instinto clarividente e infalível que
a faz encontrar e acompanhar o verdadeiro craque. Foi o que aconteceu: — a
pelota não largou Zizinho, a pelota o farejava e seguia com uma fidelidadede cadelinha ao seu dono. (Sim, amigos: —
há na bola uma alma de cachorra.)
No fim de certo tempo, tínhamos a ilusão
de que só Zizinho jogava. Deixara de ser um espetáculo de 22 homens, mais o
juiz e os bandeirinhas. Zizinho triturava os outros ou, ainda, Zizinho afundava
os outros numa sombra irremediável. Eis o fato: — a partida foi um show pessoal
e intransferível.
E, no entanto, a convocação do formidável
jogador suscitara escrúpulos e debates acadêmicos. Tinha contra si a idade, não
sei se 32, 34, 35 anos. Geralmente, o jogador de 34 anos está gagá para o futebol,
está babando de velhice esportiva. Mas o caso de Zizinho mostra o seguinte: — o
tempo é uma convenção que não existe nem para o craque, nem para a mulher bonita.
Existe para o perna-de-pau e para o bucho. Na intimidade da alcova, ninguém se
lembraria de pedir à rainha de Sabá, a Cleópatra, uma certidão de nascimento.
Do
mesmo modo, que importa a nós tenha Zizinho dezessete ou trezentos anos, se ele
decide as partidas? Se a bola o reconhece e prefere?
No
jogo Brasil x Paraguai, ele ganhou a partida antes de aparecer, antes de molhar
a camisa, pelo alto-falante, no intervalo.
Em
último caso, poderá jogar, de casa, pelo telefone.
* Brasil
3 x 0 Paraguai, 13/11/1955, no Maracanã. Zizinho fez dois gols e deu o passe para
Escurinho marcar o seu.
[Manchete Esportiva,
3/12/1955]
Fonte:
RODRIGUES, Nelson, 1912-1980.À sombra das chuteiras imortais : crônicas de
futebol / Nelson Rodrigues ; seleção e notas Ruy Castro. — São Paulo :
Companhia das Letras, 1993.
Nenhum comentário:
Postar um comentário