domingo, 1 de junho de 2014

Em tempos de Copa do Mundo: revendo Nelson Rodrigues

Aproveitando a ocasião da Copa do Mundo publicaremos a partir de hoje as crônicas de Nelson Rodrigues publicadas no livro À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol organizado por Rui Castro. A cada dia, publicaremos uma crônica. Um presente pra quem gosta de futebol e um raro prazer para quem gosta do texto do cronista.
Nelson Rodrigues nasceu no Recife, PE,
em 1912, e morreu no Rio, em 1980.
"Do brasileiro vira-lata ao brasileiro orgulhoso de ser brasileiro — esta é a trajetória contada por Nelson Rodrigues nas setenta crônicas de À sombra das chuteiras imortais. Elas cobrem o período que vai da Copa do Mundo de 1950, em que a derrota do Brasil para o Uruguai em pleno Maracanã reforçou a péssima imagem que o brasileiro fazia de si mesmo, à Copa de 1970 no México, a do tricampeonato — passando pela emoção de todas as Copas que vieram no meio e que ajudaram o Brasil a se transformar como nação.
Mas não é só quando trata da seleção que Nelson faz do futebol um teatro que envolve todas as paixões humanas. Ao falar de um reles Flamengo X Canto do Rio ou do velório de um velho jogador obscuro, ele está apenas usando o futebol como um pretexto para mergulhar em suas obsessões: o heroísmo e o medo, a multidão e o indivíduo, a vida e a morte.
Seleção de Ruy Castro

ORELHAS DO LIVRO

"Nelson Rodrigues não enxergava direito. De longe, então, era incapaz de distinguir Fulano de Beltrano. No Maracanã, que deixa o torcedor a léguas do campo, não conseguia ver o jogo sozinho. Tinha que ter alguém soprando no ouvido dele os lances que a vista curta não alcançava. E, no entanto, ninguém jamais retratou um jogo de futebol com a dimensão épica que o leitor vai encontrar neste livro organizado por Ruy Castro com o mesmo rigor e o mesmo encantamento com que se debruçou sobre a vida e a obra desse admirável artista que conheci tão de perto.
Releio, em estado de graça, a prosa poética de Nelson Rodrigues, escrita ao longo de vinte anos. São crônicas da época em que o futebol brasileiro foi mais feliz. O livro apaixona. O estilo é, ao mesmo tempo, lírico e cortante. Nelson adjetiva a vida e os homens com uma audácia exemplar. À sombra das chuteiras imortais é a obra sem igual de um cronista que nunca deu a mínima bola para a frígida aritmética do jogo. Na ótica privilegiada de Nelson, futebol sempre foi e há de ser arrebatamento. Paixão avassaladora. Chuteiras sangrando pela doce abstração de um gol.
O olhar metafórico de Nelson percorria o campo todo, recriando cada passe, cada drible, cada gol, numa secreta tabelinha com parceiros do imponderável. Era nas entrelinhas desse jogo sempre mágico que ele ia buscar seus personagens. A bola que passasse por Castilho não passaria por uma certa alma do outro mundo que o cronista volta e meia escalava para salvar de uma derrota o time do Fluminense ou a seleção nacional. Por suas sagradas paixões, Nelson Rodrigues encarava Deus e o mundo.
Nelson Rodrigues costumava dizer que, como um menino, via o amor pelo buraco da fechadura. Poderia dizer, também, que via o futebol com os olhos de um iluminado. Todo domingo, ele ia ao estádio, para contemplar os anjos e os demônios da sua devoção. Foi assim, no entardecer de cada jogo, que nasceu À sombra das chuteiras imortais, canto primeiro e único à epopéia do futebol brasileiro.
Nelson é o nosso Homero, sem tirar nem pôr."

Armando Nogueira

Fonte: Rodrigues, Nelson, 1912-1980. À sombra das chuteiras imortais : crônicas de futebol / Nelson Rodrigues ; seleção e notas Ruy Castro. — São Paulo : Companhia das Letras, 1993.

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