quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Quase negros, quase brancos

continuação Caderno Especial JC/Recife

PROSTITUTAS, QUASE LIVRES

A maconha misturada com crack tornava Luciana, tinha apenas 15 anos, mais à vontade para transar por dinheiro. Aí podia comprar roupa sem ter que esperar o Natal

Antes de falarmos sobre quanto Luciana ganhava por programa e com a venda de crack, vamos conhecer Rosalina e Eufrasina. Os nomes são um tanto improváveis para este novo mundo, mas não em 1879, ano em que as duas irmãs menores chegaram sozinhas ao Rio de Janeiro. Tiveram sorte relativa: foram logo encaminhadas para a polícia, mas o primeiro-tenente Guilherme Waddington, comandante do barco Nacional Bahia, já havia levantado 1.232 réis para alforriá-las. Ambas eram brancas e estavam prestes a se deitar em troca de dinheiro. Acabaram virando notícia publicada no dia 8 de abril no jornal carioca O Cruzeiro: (...)“Foram embarcadas na Paraíba por um indivíduo de nome José Rufino, que as ditas menores dizem ser pai delas. Estas raparigas vinham para esta corte a fim de serem vendidas a um indivíduo que compra escravas moças para entregá-las à prostituição”.

“Às vezes negrinhas de dez, doze anos já estavam na rua se oferecendo a marinheiros enormes, grangazas ruivos que desembarcavam nos veleiros ingleses e franceses com fome doida de mulher. E toda esta super excitação de gigantes louros, bestiais, descarregava-se sobre molequinhas; e além da super excitação, a síflis, as doenças do mundo, as quatro partes do mundo, as podridões internacionais do sangue” (Gilberto Freyre, Casa grande e senzala)

Já falaremos sobre como Luciana, dos 15 aos 18 dormindo com homem por uns R$ 15, se envolveu com o tráfico e teve que se esconder para não levar tiro. Antes é importante saber que a chegada de Rosalina e Eufrasina flagra um aspecto que torna nosso novo mundo não tão novo assim: a presença das brancas menores de idade no mundo da prostituição. A notícia atesta que mesmo antes da abolição as garotas de pele clara já começavam a competir com as de pele escura em um mercado em que valia até mesmo ser vendida pelo próprio pai. É por isso que a presença de “três pardinhas” também a bordo do Nacional Bahia não rendeu mais do que uma linha. O mercado do sexo já era algo bastante comum no País, e eram justamente negras (ou mestiças) que desempenhavam tal papel na colônia. Grande parte trabalhava a mando de seus senhores e senhoras, que concediam vales noturnos de liberdade e decoravam as pretas com joias caras para que elas arrumassem clientes. O lucro era repassado para os patrões no início da manhã.

Luciana, agora vamos falar dela, está mais para as pardinhas do que para as irmãs brancas da Paraíba. Mas o seu pardo tão esmaecido, duas gotas de preto na pele branca, torna a menina clara e distinta em meio ao batalhão de menores negras que se prostituem no Brasil. Luciana se vê e é vista como branca, é exemplo de como no País a cor é antes de tudo uma construção. Como se sabe, ela traficou droga, se prostituiu e se escondeu para não ser morta. Mas não toca em nenhum dos três assuntos quando passa a falar de si mesma tendo como pano de fundo uma parede descascada. Vai para longe, chega aos 7 anos de idade. Foi quando um conhecido da família, moram todos no Curado, tocou por baixo da sua calcinha. Foi seu primeiro beijo. Ninguém pergunta, mas ela fala. História sem beleza que ela nunca contou aos pais, mais fácil contar para alguém que ela conhece há dez minutos. Nessa época, a mãe começou a definhar, ficou doente e compraram uma cadeira de rodas. Foi quando as paredes do apartamento começaram a descascar. “Eu fui feliz até ali.”

No dia em que Luciana tirou um short curto da gaveta e foi para a rua, o pai não estava em casa, a mãe estava lá dentro sentada na cadeira de rodas. Pegou um ônibus e seguiu para o Ibura, ali podia contar com uma pobreza equivalente ao bairro onde nasceu. Era o mesmo que estar em casa. Ia fazer 15 anos ainda quando sentou em um bar, uma amiga preta ao lado. Algumas horas depois havia um homem com cerca de 50 anos em cima dela. Quando ele foi embora e deixou o dinheiro (deu R$ 25, ela dividiu com a amiga), ela ficou feliz porque se sentiu independente. Não precisava esperar até o Natal para comprar uma roupa.

Outra coisa legal do dinheiro era a farra, todos bebiam, fumavam um melado e riam, riam. Maconha com crack era “o pipoco”. É claro que ela não ia voltar para a casa para ver a mãe sem uma perna, sentada na cadeira de rodas. Todas as vezes que chegava em casa de manhã escutava-a dizer: “Puta”. Outros homens subiram em cima dela. No total, ficava só com R$ 80 por mês. “É porque não era todo dia não. E eu gastava tudo, arrumava confusão. Só não queria voltar para casa.” Era porque, além de “puta”, a quase Rosalina apanhava. Apanhava muito. “Mas eu merecia.”

Numa das farras, Luciana, garota magra que nunca colecionou figurinhas de chiclete ou da Hello Kitty, se apaixonou. Estava doidinha, foi cerveja, aguardente e um melado, sentou na escadaria da boate (da “dança”, boate é meio metido) e vomitou. Ele não deixou ninguém chegar junto. Pode ser que tenha sido sentimento de culpa, porque foi ele que vendeu o cigarro para ela. Dormiram juntos e ele (talvez seu nome seja Raul, ou Cláudio, ou Luiz, ou José) não subiu nela. É claro que ela o ajudou na primeira vez em que ele pediu. Ajudou todas as vezes, ficou conhecendo várias bocas de fumo da Zona Sul. Era só sair com a mochila e vender o melado ou o crack. Era boa de venda, o chefe dele quis até conhecer a menina, elogiou. As paredes do apartamento no Curado continuavam descascando, mas agora Luciana tinha um quase amor, “porque era mais cama e trabalho mesmo”, e ainda recebia elogio. O “puta” daquela mulher triste da cadeira de rodas nem importava tanto. Agora ela só dormia por dinheiro quando brigava com o amor (o quase só valia para ele), sabia quando havia outra. Aí transava mesmo, ganhava dinheiro e pronto. Ia fazer 18 anos quando chegou um rapaz conhecido dizendo: “Se eu fosse você, sairia daqui. Ele mesmo já foi”. Assim, sem ligação ou SMS, ela soube: o namorado sumiu com a droga e o dinheiro do patrão. Estavam procurando por ele e, consequentemente, por ela.

Se o celular amarelo que ela comprou funcionasse direito, teria ligado para ele lá de Vitória, foi parar em outra cidade sem saber muito bem o que estava acontecendo. Passou cinco meses na casa de uma amiga “da farra”. Recebia notícias: ele não voltou ao Curado, dois rapazes numa moto procuraram por ela uma vez, em outra foi uma moça alta e loura. Chegavam em sua casa, perguntavam, a mãe disse a verdade: “Eu não sei”. Luciana estava tentando fazer o celular amarelo funcionar quando soube que Nádia apareceu morta. Sabia que às vezes ela andava com seu quase amor, chegou a discutir com os dois. Mas ficou com pena quando acharam a menina nua perto da BR (algo novo no novo mundo: Nádia era pardinha, mas seu nome saiu no jornal). O policial que deu entrevista falou assim: “Envolvida com o tráfico local”.

MATAR O BEBÊ

A mãe estava no médico no dia em que Luciana voltou para casa. O pai, como sempre, longe. Não sentia mais medo: o namorado estava preso e “os dois caras de moto” que circulavam procurando por ela há tempos não apareciam. Desde então, só sabe que o ex está morando em um dos pavilhões do presídio Aníbal Bruno, foi indiciado por tráfico, roubo e assassinato. Tem saudade. “Eu gosto dele, no começo do namoro ele me abraçava, mas só no começo.” Não consegue mais se aproximar da turma da farra porque a liberdade ficou cara demais (sente saudade também). O pior foi quando uma amiga de muito tempo foi visitada por um dos caras da moto. Queria saber de Luciana. “Ela achou que iam entrar na casa e matar o bebê dela, me disse que da próxima vez ia escondê-lo no armário. Eu vi que não tinha mais jeito, imagina o bichinho dentro do armário. Podiam matar todo mundo, eu, ela, o marido. Mas o bebê não. Eu amo muito o bebê.”

Ela desce três escadas até o térreo, a família quis morar no terceiro andar de um dos prédios do conjunto habitacional porque era “mais chique”. Vai comprar uma Coca-Cola dois litros para oferecer às visitas. Fez pipoca também. Não precisa, não precisa, mas ela insiste e volta com o garrafão preto gelado, serve em copos de plástico. O refrigerante soa como o único artigo de luxo dentro do apartamento descascado, a única coisa realmente nova, fresca, sem nada que lembre o tempo em que apanhava, o tempo (foi ontem) em que se prostituía, o tempo em que Raul, ou Cláudio, ou Luiz, ou José, a abraçava. Ela coloca a garrafa na estante, a cortina rosa que separa a sala dos quartos lá dentro voa um pouco e dá para ver parte de uma cadeira de rodas. “Quer Coca, mãe?” Ninguém responde.

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Maioria preta: De acordo com o relatório Direitos da criança, realizado pelo Relator Especial da ONU sobre a venda de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil, Sr. Juan Miguel Petit Addendum (2003), raça e etnicidade são determinantes de vulnerabilidade para a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. Mulheres e crianças traficadas também são, principalmente, de origem negra (afro-brasileiras).

Abuso sexual: O mesmo relatório mostra que o abuso sexual geralmente induz à exploração sexual. Estatísticas da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia) indicam que 58% dos casos de abuso sexual ocorreram dentro da família, geralmente cometidos pelo pai ou padrasto. Em muitos casos, o abusador era conhecido da vítima.

Pernambuco no topo: Em 2005, a Unicef divulgou que a prostituição infantil está presente em cerca de 16,88% dos municípios brasileiros (todas as capitais estão na lista). As cidades o interior (com população entre 20 e 100 mil habitantes) são aquelas cujos índices são mais altos. O Nordeste foi a região líder no ranking vergonhoso, com 31,8% das cidades citadas. Pernambuco lidervaa o ranking nordestino com setenta cidades onde menores se prostituem. A entidade divulgou no ano passado que 150 milhões de meninas e 73 milhões de meninos menores de 18 anos são vítimas de exploração sexual no mundo.

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SERVIÇO
Fonte: Dicionário da escravidão negra no Brasil (Clóvis Moura).



AMÉM, É NOSSA SENHORA


A cada sete anos, a Mãe de Deus desce até a terra para comandar, encarnada na ialorixá Estelita, 103 anos, a festa da Irmandade da Boa Morte, na Bahia

Nossa Senhora mora numa casa pequena, em uma ladeira de Cachoeira, Recôncavo Baiano, tem 103 anos e é devota de Obaluaê. Usa saias de renda belíssimas, de outros panos, brilhosos, também. Uma é bordada, tecido comprado em São Paulo, tem mais de 30 anos. Nossa Senhora gosta de samba de roda e teve 12 filhos, todos criados no mesmo lar onde ela mantém um terreiro de candomblé. De manhã, costuma comer “um pratão de mingau”. Quando era moça, tinha tabuleiro, vendia doce e acarajé. Foi nessa época que teve um sonho que mostrava que sua vida ia mudar. Aí estava Estelita, esse é o nome de Nossa Senhora, estava Estelita na rua, vendendo doce e acarajé, quando alguém perguntou: “Como é, você vai ser minha irmã ou não vai?”

Ela foi. Isso tem mais de 60 anos e há mais de 30 é a juíza Perpétua da Irmandade da Boa Morte, o mais alto cargo de um grupo criado no início do Oitocentos, em Salvador, por africanas vindas do Ketu. É a única irmandade negra do mundo formada apenas por mulheres. A cada sete anos, a juíza recebe a Santa Mãe de Jesus, encarna Aquela que agrega todas as mulheres, a Virgem que morreu em paz, sem doenças, consumida pelo amor de Deus e o desejo de estar perto do filho. É Ela, na face de Estelita, a mais antiga do grupo, quem comanda periodicamente a enorme festa realizada pela congregação durante o mês de agosto.

A presença divina no corpo frágil, uma bênção para muitos, uma blasfêmia para tantos outros, é incontestável naqueles dias. Segurando um báculo, espécie de cajado que marca seu poder, Estelita senta-se, unindo latim e iorubá, ao lado de padres durante parte da celebração católica da festa (realizada na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário). O acessório só se materializa em suas mãos a cada sete anos, para marcar a presença sagrada: quando Nossa Senhora não é a provedora da festa, Estelita não senta entre os religiosos e seu báculo existe, mas é invisível.

Poucas recebem a imensa honra de ceder a carne e o sangue a Maria. É preciso ter angariado a confiança das irmãs e dedicar boa parte da vida a irmandade, onde hoje são aceitas mulheres com menos de 45 anos, uma regra antiga que garantia, de certa maneira, a total dedicação das irmãs (havia o entendimento de que as jovens seriam mais propensas aos prazeres mundanos, à noite, ao álcool, ao abandono da ordem). Só entram mulheres que estão ligadas a um terreiro de candomblé, que sejam filhas de um orixá relacionado à morte (Nanã, Ogum, Obaluaê), que estejam dispostas a pedir esmolas para a compra de alimentos e artigos para as celebrações, que não se importem em passar grande parte de agosto fora de casa, reunidas com as outras irmãs numa espécie de retiro.

“Queres lavar a tua alma com água santa? Queres provar o sal de Deus? Jogas fora da tua alma todos os teus pecados? Não pecarás nunca mais? Queres ser filho de Deus? Jogas fora da tua alma o Diabo?”
(iniciação católica à qual os negros africanos se submetiam quando trazidos ao Brasil)


É necessário ainda cozinhar para a verdadeira multidão que espera as comidas saídas da sede da irmandade nos dias de festa. As iniciantes passam três anos sendo testadas até poderem de fato entrar no grupo. Apenas aquelas consideradas obedientes têm sucesso. Todas, até as mais respeitadas, donas de altos postos, devem pedir permissão a Estelita sobre assuntos ligados à Boa Morte. O símbolo utilizado para definir a hierarquia é uma saia – os vestidos não são permitidos dentro da congregação. A escrivã é a dona da primeira saia; a segunda pertence à tesoureira; a provedora detém a terceira; enquanto a quarta é da procuradora-geral. A Juíza Perpétua, que só deixa o cargo quando alcança a sua boa morte, está acima das quatro saias. O sistema foi criado pelas negras do partido alto que fundaram a ordem, mulheres endinheiradas que conseguiram comprar a liberdade e, em agradecimento, fizeram votos a Santa Maria Mãe de Deus a favor da libertação dos negros. Apesar de o papel das mulheres escravas não ser ressaltado nos estudos sobre o período, elas, pioneiramente, criaram um grupo de força religiosa e também política. Elas também cuidavam dos funerais, existiam para que outros negros, como tanto havia acontecido, não morressem mais na escuridão.

Nossa Senhora, apesar de olhar por todos nós, já foi barrada na Matriz de Cachoeira: em 1989, um conflito envolvendo vaidade, luta pelo poder e preconceito fez com que a irmandade deixasse de celebrar a festa na igreja, rompendo um laço iniciado na metade do século 19, quando a ordem chegou ao município. Assim, Estelita, mesmo divina, perdeu seu lugar no altar, o canto ao lado dos padres, precisou carregar seu báculo até outro local, a Igreja Católica Apostólica Brasileira. Ela lembra até hoje do período, mas evita falar qualquer coisa para não reacender a briga. Até começa a dizer algo, mas é repreendida pelo filho Nelson, que circula pela casa enquanto ela dá entrevista. Foram anos difíceis, em que duas imagens vitais na história da congregação, Nossa Senhora da Glória e Nossa Senhora da Boa Morte (com Nossa Senhora da Assunção, completam a tríade que invoca uma única Maria), foram retidas pelo pároco da cidade. O episódio é conhecido como O Sequestro das Santas. Assim, as irmãs não puderam render suas homenagens, tampouco arrumar as imagens para a festa do ano seguinte, prática ancestral entre elas. A missa pela alma das Irmãs Falecidas, que abre a celebração na quinta; a missa de corpo presente, na sexta; e a missa da subida de Nossa Senhora aos céus, no domingo, deixaram de ter um espaço sagrado. As negras de saias, que gostariam de homenagear Aquela que as teria libertado, não passaram das escadas.


MENOS NOVE FILHOS

O pároco não contava, no entanto, com uma poderosa aliada da Nossa Senhora simbolizada no corpo de Estelita. A seu favor, estava a modernidade de um tempo no qual religião, fé e espetáculo se confundem: há quatro décadas, a festa da Boa Morte já havia deixado de ser uma celebração quase íntima, com no máximo 20 seguidores durante as procissões, para se transformar em cartão-postal institucional, evento integrante do calendário turístico baiano. A presença de turistas passou a ser incentivada, o dinheiro começou a circular, foi o tempo no qual muitos norte-americanos, principalmente negros, procuravam Cachoeira em agosto. Estelita, que não era juíza nem sagrada naquele tempo, recorda bem dos gringos comprando, a preços baixíssimos, os colares e pulseiras de ouro que adornavam as irmãs. “Eu vendi um, grande, fiquei com outro.” Quase todas as joias deixadas pelas antigas escravas foram levadas como suvenir. O dinheiro, em parte, foi usado para a manutenção da irmandade, que passou por períodos difíceis e quase chega ao fim no início dos 70 – apenas seis irmãs faziam parte da congregação. Com o apoio de medalhões baianos – o escritor Amado, o cantor Gil, o político Magalhães – elas receberam uma sede própria. Também veio a visibilidade, os jornais adorando publicar as negras repletas de colares dourados, as roupas que garantiam boas fotos. Eram imagens fortes, mais poderosas do que a do pároco, que, após 20 anos sem abrir as portas para as mulheres da Boa Morte, teve que abrir, no ano passado, passagem para Nossa Senhora, em Estelita, retornar ao altar.

Foi um alívio para a mulher que não perdeu apenas um filho, ao contrário da santa que a visita a cada sete anos. Dos doze nascidos, dez homens e duas moças, apenas três estão vivos. Também enterrou o marido que trabalhou, como ela, numa das fábricas de charutos que cercavam o Rio Paraguaçu, de onde se vê São Félix de um lado, Cachoeira do outro. “Deus já levou quase tudo.” Sentada à mesa da salinha que divide o salão do terreiro e sua cozinha, vai lembrando-se de alguns nomes. Flaviano. Melquíades. Elias. Joel. Dinalva. Cláudio. Renato. O pai dos meninos, Graciliano, que se foi há mais de 30 anos, “cortou o pé e deu a moléstia”. Cada vez que um dos meninos se ia, Estelita chamava pela Virgem que conhece tão bem. “Maria, salvadora dos mortais, orai, orai, orai por nós.” Mistura a fala com um canto, o nome dos filhos escapa à memória, mas a prece não. A filha de Obaluaê (ou Omulu), uma cruz de palha usada na Missa de Ramos dentro do jarro vermelho, sapatilha de algodão nos pés, queria ir à missa, mas o corpo não deixa mais, fala, canta e reza. “Dai-me morte salutar, ó Maria, Mãe de Deus.” Estelita vai morrer livre da escuridão.

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Coisa de preto?

O começo: O surgimento da Irmandade da Boa Morte está relacionado ao aparecimento do primeiro terreiro de Candomblé de Salvador, a Casa Branca do Engenho Velho (ou Ilê Axé Iyá Nassô Oká), por volta de 1820. Três negras africanas são aceitas como fundadoras: Adetá (ou Iya Detá), Iya Kalá e Iya Nassô. Com a urbanização de Salvador, a irmandade se enfraquece, ressurgindo em Cachoeira na metade do século 19.

Espaços religiosos: O Centro de Estudos Afro-orientais (Ceao/UFBA) dá conta de aproximadamente 1.500 templos afro-brasileiros (roças, sítios, terreiros, casas de umbanda) no Brasil.

Praticantes - Segundo o recenseamento de 2000 (IBGE), apenas 0,3% da população brasileira adulta declara-se pertencente a uma das religiões afro-brasileiras, o que corresponde a pouco mais de 470 mil seguidores. Outras pesquisas, porém, indicam valores maiores, da ordem de pelo menos o dobro das cifras encontradas pelo censo (Pierucci e Prandi, 1996). Segundo o IBGE, apenas 16,7% dos umbandistas declararam ser de cor preta. Entre os praticantes do candomblé, foram apenas 22,8%

Proibição e proteção - Durante o Estado Novo, no governo Vargas (1937-1945), o exercício do Candomblé foi proibido no País. Os terreiros ficaram subjugados à Delegacia de Jogos, Entorpecentes e Lenocínio. A decisão ia contra a Constituição de 1824, que dava garantia à liberdade de culto desde que os templos não ostentassem símbolos ou identificações em sua fachada. Atualmente, a Lei federal nº. 6.292, de 15 de dezembro de 1975, protege os terreiros de candomblé no Brasil contra qualquer tipo de alteração de sua formação material ou imaterial. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Instituto Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) são os responsáveis pelo tombamento das casas. O preconceito, no entanto, se mantém. Um exemplo é a declaração do pastor fluminense Samuel Gonçalves, da Assembléia de Deus, que afirmou que uma das "três maldições" do Brasil é a religião africana (Folha de S.Paulo, 30/7/2002, p. A6). Em abril deste ano, o papa Bento XVI, durante encontro realizado com 15 bispos brasileiros, criticou o sincretismo no País.

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Fontes: Renato Silveira (O candomblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano de keto/UFBA); Luiz Cláudio Dias Nascimento (Candomblé e Irmandade da Boa Morte); Afonso Maria Soares (Sincretismo afro-católico no Brasil: lições de um povo em exílio);Reginaldo Prandi(O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso); Daniella Dias (Os terreiros de candomblé na Região Metropolitana do Recife: localização geográfica e sua identificação nas fachadas, ontem e hoje); Wiltércia Silva de Souza (A “guerra santa” entre a Irmandade da Boa Morte e a Igreja Católica. Bahia – 1989/1990); Jucinete Maria Machado (Irmandade da Boa Morte - a comunicação do mistério).

Fonte:http://www2.uol.com.br/JC/sites/especial_joaquimnabuco/html/materia_04.html

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