No momento em que o pensamento neoliberal entra em decadência, depois de reinar por quase duas décadas, é preciso retomar questões que foram enterradas no período anterior sob o argumento da inutilidade ou do desuso. Uma delas é a crise dos partidos políticos.
No período anterior, o esvaziamento ideológico das instâncias partidárias pela mesmice liberal era dado como uma fatalidade - os partidos não poderiam se contrapor ao consenso e à racionalidade do liberalismo; seria normal, numa realidade em que a ideologia supostamente perde o sentido em favor da "verdade" única, que a política fosse a expressão de jogos de interesse pessoais, não raro sujeita a rapinagens e banditismo.
A desarticulação dos partidos políticos, a crise de representatividade, o afugentamento de bons quadros, a corrupção, enfim, todos os problemas decorrentes do afrouxamento ideológico das agremiações, que resultaram no descolamento delas e daquelas que seriam suas bases sociais, eram apontados como intrínsecos à democracia, menos perfeita que os mercados para regular a vida social. À democracia imperfeita se contrapunha a perfeição mercado.
No Brasil, a histeria neoliberal chegou praticamente junto com a rearticulação partidária pós-ditadura. O PSDB e o DEM já começaram a se confundir nesse período, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) cumpria uma agenda em conformidade com a ideologia mundialmente hegemônica, ambos recém-criados - o PSDB, como racha do antigo MDB da ditadura; o PFL, como dissidência da antiga Arena. Até então, eram as duas legendas que tinham condições de se fixar no quadro partidário como representações de fato de setores da social-democracia, o primeiro, e de setores conservadores de outro, com alguma substância ideológica. O PMDB, sucedâneo do MDB, havia perdido densidade com a saída de importantes quadros políticos para outros partidos e o PSDB foi o que mais incorporou do velho partido intelectuais e formuladores. O PDS, que sucedeu a Arena, levou um golpe de morte com a derrota de Paulo Maluf no Colégio Eleitoral. O PFL levou boa parte dos líderes da Arena, mas foi legitimado pelo apoio ao candidato de oposição no Colégio Eleitoral, Tancredo Neves.
À esquerda, emergiu o PT como a novidade no quadro partidário. Foi o único partido de massas da história do país, produto de uma engenhosa e histórica aliança entre uma vanguarda política, formada pelos grupos que emergiam da clandestinidade e pelas lideranças forjadas no novo sindicalismo, e nas bases sustentado por uma militância não só incorporada pelos grupos de esquerda, mas pela organização capilar da igreja progressista. Por mais que se tenha atribuído aos grupos mais radicais do partido sucessivas derrotas eleitorais, não se pode negar que eles serviram como um contrapeso aos setores que defendiam uma completa guinada à direita. O PT conseguiu não passar do centro, mesmo depois da crise do socialismo real, porque suas decisões expressavam a luta interna em que a esquerda era minoritária, mas continuava existindo.
O pós-governos Lula colocam questões urgentes a serem resolvidas na área política. A crise partidária é a pior. O quadro criado no período de redemocratização foi afrouxado pela homogeneização do pensamento político e econômico, no período neoliberal, e pela falta de perspectivas a que foram jogados os socialistas depois da queda do Muro de Berlim. Além disso, o PT, depois da crise do Mensalão, em 2005, foi engolido pelo sucesso do segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente, hoje, é maior que o seu partido.
A oposição, por sua vez, sem firmeza ideológica e identidade política e sem ter conseguido se libertar da tradição política brasileira de partidos de quadros, tem grandes chances de sucumbir a um fracasso eleitoral. São modelos de partidos que não sobrevivem a não ser como porta-vozes de pensamentos hegemônicos, e desde que com a ajuda de quadros políticos tradicionais que não chegam a acrescentar massa orgânica e não florescem a não ser sob o guarda-chuva do Estado.
A situação dos partidos oposicionistas torna-se mais crítica, quanto mais agressivo for o discurso eleitoral. A agressividade atrai setores de direita, mas tende a afastar militância - no caso do PSDB, comprometida anteriormente com a social-democracia; no caso do ex-PFL, setores que têm forte dependência do Estado.
Nesse quadro, e passadas as eleições, os partidos têm que olhar para dentro. Não existe reforma política que os obrigue a isso - é apenas uma questão de sobrevivência. Os partidos estão numa nova realidade, onde a diversidade deixou de ser uma expressão de "atraso" e voltou a ser uma condição para a democracia. A mudança qualitativa das legendas depende da reincorporação da divergência ideológica como motor da política. É a mudança de qualidade das agremiações que terá o poder de melhorar a qualidade da política. Se os atores políticos não entenderem isso, derrotas eleitorais serão fatais para os partidos que hoje existem.
O PT, talvez premido pelas dificuldades do seu governo no Legislativo, é o que mais se aproxima de entender esse fenômeno. A decisão de centrar seus esforços eleitorais na candidatura à Presidência e aos legislativos, em detrimento de campanhas para os governos de Estado, reforçará o partido no cenário político. Numa democracia, afinal, são nas casas legislativas que os partidos se movem. A lealdade partidária é outro importante elemento, e esse ainda é um ponto forte do partido de Lula.
Falta a alguns observadores da realidade entender que o PT não vai crescer porque Lula agradou a todos os setores - isso está longe de ser verdade, dada a forte oposição oferecida ao governo por setores sociais importantes. Pode crescer, sim, na esteira da popularidade de Lula, mas principalmente porque os atuais maiores partidos brasileiros mantiveram uma ligação extremamente tênue com os setores que representavam. Continuaram acreditando que a verdade é única e que aqueles que a ela se opõem são irracionais.
No período anterior, o esvaziamento ideológico das instâncias partidárias pela mesmice liberal era dado como uma fatalidade - os partidos não poderiam se contrapor ao consenso e à racionalidade do liberalismo; seria normal, numa realidade em que a ideologia supostamente perde o sentido em favor da "verdade" única, que a política fosse a expressão de jogos de interesse pessoais, não raro sujeita a rapinagens e banditismo.
A desarticulação dos partidos políticos, a crise de representatividade, o afugentamento de bons quadros, a corrupção, enfim, todos os problemas decorrentes do afrouxamento ideológico das agremiações, que resultaram no descolamento delas e daquelas que seriam suas bases sociais, eram apontados como intrínsecos à democracia, menos perfeita que os mercados para regular a vida social. À democracia imperfeita se contrapunha a perfeição mercado.
No Brasil, a histeria neoliberal chegou praticamente junto com a rearticulação partidária pós-ditadura. O PSDB e o DEM já começaram a se confundir nesse período, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) cumpria uma agenda em conformidade com a ideologia mundialmente hegemônica, ambos recém-criados - o PSDB, como racha do antigo MDB da ditadura; o PFL, como dissidência da antiga Arena. Até então, eram as duas legendas que tinham condições de se fixar no quadro partidário como representações de fato de setores da social-democracia, o primeiro, e de setores conservadores de outro, com alguma substância ideológica. O PMDB, sucedâneo do MDB, havia perdido densidade com a saída de importantes quadros políticos para outros partidos e o PSDB foi o que mais incorporou do velho partido intelectuais e formuladores. O PDS, que sucedeu a Arena, levou um golpe de morte com a derrota de Paulo Maluf no Colégio Eleitoral. O PFL levou boa parte dos líderes da Arena, mas foi legitimado pelo apoio ao candidato de oposição no Colégio Eleitoral, Tancredo Neves.
À esquerda, emergiu o PT como a novidade no quadro partidário. Foi o único partido de massas da história do país, produto de uma engenhosa e histórica aliança entre uma vanguarda política, formada pelos grupos que emergiam da clandestinidade e pelas lideranças forjadas no novo sindicalismo, e nas bases sustentado por uma militância não só incorporada pelos grupos de esquerda, mas pela organização capilar da igreja progressista. Por mais que se tenha atribuído aos grupos mais radicais do partido sucessivas derrotas eleitorais, não se pode negar que eles serviram como um contrapeso aos setores que defendiam uma completa guinada à direita. O PT conseguiu não passar do centro, mesmo depois da crise do socialismo real, porque suas decisões expressavam a luta interna em que a esquerda era minoritária, mas continuava existindo.
O pós-governos Lula colocam questões urgentes a serem resolvidas na área política. A crise partidária é a pior. O quadro criado no período de redemocratização foi afrouxado pela homogeneização do pensamento político e econômico, no período neoliberal, e pela falta de perspectivas a que foram jogados os socialistas depois da queda do Muro de Berlim. Além disso, o PT, depois da crise do Mensalão, em 2005, foi engolido pelo sucesso do segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente, hoje, é maior que o seu partido.
A oposição, por sua vez, sem firmeza ideológica e identidade política e sem ter conseguido se libertar da tradição política brasileira de partidos de quadros, tem grandes chances de sucumbir a um fracasso eleitoral. São modelos de partidos que não sobrevivem a não ser como porta-vozes de pensamentos hegemônicos, e desde que com a ajuda de quadros políticos tradicionais que não chegam a acrescentar massa orgânica e não florescem a não ser sob o guarda-chuva do Estado.
A situação dos partidos oposicionistas torna-se mais crítica, quanto mais agressivo for o discurso eleitoral. A agressividade atrai setores de direita, mas tende a afastar militância - no caso do PSDB, comprometida anteriormente com a social-democracia; no caso do ex-PFL, setores que têm forte dependência do Estado.
Nesse quadro, e passadas as eleições, os partidos têm que olhar para dentro. Não existe reforma política que os obrigue a isso - é apenas uma questão de sobrevivência. Os partidos estão numa nova realidade, onde a diversidade deixou de ser uma expressão de "atraso" e voltou a ser uma condição para a democracia. A mudança qualitativa das legendas depende da reincorporação da divergência ideológica como motor da política. É a mudança de qualidade das agremiações que terá o poder de melhorar a qualidade da política. Se os atores políticos não entenderem isso, derrotas eleitorais serão fatais para os partidos que hoje existem.
O PT, talvez premido pelas dificuldades do seu governo no Legislativo, é o que mais se aproxima de entender esse fenômeno. A decisão de centrar seus esforços eleitorais na candidatura à Presidência e aos legislativos, em detrimento de campanhas para os governos de Estado, reforçará o partido no cenário político. Numa democracia, afinal, são nas casas legislativas que os partidos se movem. A lealdade partidária é outro importante elemento, e esse ainda é um ponto forte do partido de Lula.
Falta a alguns observadores da realidade entender que o PT não vai crescer porque Lula agradou a todos os setores - isso está longe de ser verdade, dada a forte oposição oferecida ao governo por setores sociais importantes. Pode crescer, sim, na esteira da popularidade de Lula, mas principalmente porque os atuais maiores partidos brasileiros mantiveram uma ligação extremamente tênue com os setores que representavam. Continuaram acreditando que a verdade é única e que aqueles que a ela se opõem são irracionais.
Maria Inês Nassif é repórter especial de Política.
Fonte: http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-crise-dos-partidos#more
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