A lapidação no Irã, bem como outras penas de morte terríveis de outros países, é algo brutal, bem como as demais execuções oficiais e oficiosas obtidas pelos meios ‘limpos’ do mundo atual. O caso iraniano não deveria causar espanto especial, em um mundo repleto de violências de todo o tipo.
Luís Carlos Lopes
Deve ter causado espanto aos menos informados, a persistência da pena de morte por apedrejamento no Irã contemporâneo. As grandes mídias, para variar, trataram do problema com elevado nível de espetacularização, sem qualquer preocupação em esclarecer. A lapidação, tal como é conhecida, aparece nos Evangelhos, no episódio do encontro de Jesus com Maria Madalena. Trata-se de um modo muito antigo de executar pessoas, acusadas de crimes que pretensamente feririam a moral pública e privada. Destaca-se, como um dos mais cruéis meios, ainda existentes, de matar para organizar a sociedade ou para vingar a moral estabelecida. A crucificação, desde bem antes de se transformar em um símbolo religioso, foi a principal forma de execução usada pelos romanos em séculos de história. A fogueira, como modo de eliminar os acreditados como inimigos da Igreja, tem uma longa história de terror.
A moral coletiva é formada por um conjunto de normas acreditadas como naturais, mas, de fato, profundamente artificiais. Estas desenham a ordem estabelecida. Seguem o que determina o poder de cada época. Desde tempos imemoriais, estas normas foram usadas para disciplinar o tecido social e fazer com que os membros de uma mesma comunidade aceitem seus destinos sem objetar nada ou discordar das verdades estabelecidas pelos poderosos do momento. Trata-se da aceitação consensual obtida pela força e pelo exemplo. Alguns são executados para que os demais percebam o risco e não transgridam o que é considerado ou imposto como o certo.
Desde a Antiguidade, as sociedades humanas deixaram para o Estado a tarefa de discipliná-las, normalizando o convívio social através de leis e aplicando punições, se necessário. Se o Estado deixa de funcionar ou o faz em desacordo com as crenças sociais hegemônicas ou minoritárias, está aberto o caminho para justiça pelas próprias mãos. O linchamento é um exemplo de justiça arcaica, radical e punitiva ao extremo do fim da vida. Tende a ser praticado à margem do funcionamento estatal. Em casos especiais, o Estado o estimula e o aceita como natural. A lapidação é uma espécie de linchamento oficial. Existem situações mais recentes que este tipo de justiça foi e pode ser praticado ao arrepio da lei, lembrando os velhos padrões de violência social homicida do passado.
Com a modernidade urbano-industrial a pena de morte evoluiu, sob o pretexto de civilizá-la e torná-la mais palatável. Na França, a velha guilhotina saiu da praça pública foi para o pátio das prisões, até que François Mitterand, em meados dos anos oitenta, abolisse a pena de morte em todo território francês. Permanecem sendo usados em inúmeros países: o fuzilamento, herdado da tradição militar; o enforcamento etc. A injeção letal e a câmara de gás são coisas dos EUA. O uso do gás para matar ficou famoso durante a Segunda Guerra, como forma de eliminar civis e militares presos nos campos de concentração nazistas.
A primeira experiência do uso do gás na Alemanha de Hitler (1933-1945) foi feita contra os próprios alemães. Dezenas de milhares de deficientes físicos e mentais foram eliminados por meio desse recurso, entre 1939 e 1941. Um deles era o irmão do atual Papa. O Programa T4, tal como foi denominado pelos nazistas, consistiu no balão de ensaio para eliminação sistemática de prisioneiros políticos locais, soldados inimigos, milhões de judeus, ciganos, civis tomados como reféns, dentre muitos outros. Conformava-se, como antes não se conhecia, a prática de genocídio, tão banalizada em inúmeros conflitos do pós-guerra.
A pena de morte atualmente mais usada no mundo é a execução extrajudicial, esta é bem conhecida dos brasileiros, existindo em inúmeros países. Os índices do Brasil de pessoas executadas, sem julgamento oficial, pelas polícias e por delinqüentes são, quantitativamente, muito expressivos. Com exceção dos países que vivem guerras civis ou contra o narcotráfico, será difícil encontrar os mesmos números em outros lugares. Por aqui, mata-se todo dia, deliberadamente ou por ‘acidente’ de serviço. Alguns corpos podem ser enterrados por suas famílias, outros desaparecem da face da Terra. Já haveria no país a profissão em ascensão de carrascos especializados não só em matar, como em fazer sumir os vestígios dos que foram vivos. Tem-se a triste memória que jamais deverá calar dos 144 mortos insepultos da ditadura.
A lapidação no Irã, bem como outras penas de morte terríveis de outros países, é algo brutal, bem como as demais execuções oficiais e oficiosas obtidas pelos meios ‘limpos’ do mundo atual. O caso iraniano não deveria causar espanto especial, em um mundo repleto de violências de todo o tipo. É difícil dizer que este atentado aos direitos humanos, existente no Irã, seja algo isolado. Em outras culturas, existem casos, talvez aparentemente menos bárbaros, mas igualmente cruéis. Está correto combater a lapidação como a pena de morte em geral e clamar pela erradicação de todas as formas de execução. Falar em direitos humanos é defender a mesma plataforma básica para todas as culturas e nações. O relativismo cultural, sempre invocado pelos conservadores, serve para defender ordens sociopolíticas contrárias ao bem-estar das maiorias. De outro mirante, a islamofobia contemporânea tende a dar excessivo valor aos problemas dos países muçulmanos e diminuir a importância da barbárie quando é praticada por não seguidores de Alá.
No Brasil, a pena de morte legal desapareceu há mais de cem anos. Foi fartamente usada na época colonial e no Império. Colonos brancos de várias cepas e escravos indígenas e de origem africana foram vitimados por penas aplicadas sem dó e nem piedade. As idéias do exemplo e da vingança ficaram tragicamente registradas nas páginas da história do Brasil. Desde a República Velha, ela já não mais aparece em nossos diplomas legais. Isto não impediu que continuasse a ser usada, como antes. Agora, tudo é feito com o cuidado de escondê-la ou disfarçá-la, quando praticada pelo Estado. Ninguém mais é formalmente condenado à morte por qualquer meio. Todavia, é muita hipocrisia deixar de lembrar que o procedimento continua vivo, como nunca. Infelizmente, um dos vícios da cultura brasileira é o de negar o óbvio e de postergar ad infinitum a solução de antigos problemas.
O espelho da barbárie existente nos países muçulmanos deveria ser usado para se discutir os motivos da persistência histórica de antigos costumes lá, como em todo o planeta Terra. Deveria, igualmente, servir para se atacar e tentar erradicar todo e qualquer tipo de tratamento desumano e degradante, praticado em qualquer quadrante do mundo atual. Facilmente, se podem levantar transgressões aos direitos humanos cometidas pelos países mais ricos e pelas culturas mais letradas. A barbárie não é privilégio de nenhuma etnia ou religião, a não ser que se aceitem os critérios racistas. A questão dos direitos humanos não deve ser compreendida como algo válido somente para as culturas que os propuseram. Ao levantar esta bandeira, nenhuma formação histórica nacional está livre de ser examinada em suas mazelas. O resto é hipocrisia pura, esta, moeda corrente no mundo contemporâneo.
Luís Carlos Lopes é professor e escritor.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4736&alterarHomeAtual=1
Luís Carlos Lopes
Deve ter causado espanto aos menos informados, a persistência da pena de morte por apedrejamento no Irã contemporâneo. As grandes mídias, para variar, trataram do problema com elevado nível de espetacularização, sem qualquer preocupação em esclarecer. A lapidação, tal como é conhecida, aparece nos Evangelhos, no episódio do encontro de Jesus com Maria Madalena. Trata-se de um modo muito antigo de executar pessoas, acusadas de crimes que pretensamente feririam a moral pública e privada. Destaca-se, como um dos mais cruéis meios, ainda existentes, de matar para organizar a sociedade ou para vingar a moral estabelecida. A crucificação, desde bem antes de se transformar em um símbolo religioso, foi a principal forma de execução usada pelos romanos em séculos de história. A fogueira, como modo de eliminar os acreditados como inimigos da Igreja, tem uma longa história de terror.
A moral coletiva é formada por um conjunto de normas acreditadas como naturais, mas, de fato, profundamente artificiais. Estas desenham a ordem estabelecida. Seguem o que determina o poder de cada época. Desde tempos imemoriais, estas normas foram usadas para disciplinar o tecido social e fazer com que os membros de uma mesma comunidade aceitem seus destinos sem objetar nada ou discordar das verdades estabelecidas pelos poderosos do momento. Trata-se da aceitação consensual obtida pela força e pelo exemplo. Alguns são executados para que os demais percebam o risco e não transgridam o que é considerado ou imposto como o certo.
Desde a Antiguidade, as sociedades humanas deixaram para o Estado a tarefa de discipliná-las, normalizando o convívio social através de leis e aplicando punições, se necessário. Se o Estado deixa de funcionar ou o faz em desacordo com as crenças sociais hegemônicas ou minoritárias, está aberto o caminho para justiça pelas próprias mãos. O linchamento é um exemplo de justiça arcaica, radical e punitiva ao extremo do fim da vida. Tende a ser praticado à margem do funcionamento estatal. Em casos especiais, o Estado o estimula e o aceita como natural. A lapidação é uma espécie de linchamento oficial. Existem situações mais recentes que este tipo de justiça foi e pode ser praticado ao arrepio da lei, lembrando os velhos padrões de violência social homicida do passado.
Com a modernidade urbano-industrial a pena de morte evoluiu, sob o pretexto de civilizá-la e torná-la mais palatável. Na França, a velha guilhotina saiu da praça pública foi para o pátio das prisões, até que François Mitterand, em meados dos anos oitenta, abolisse a pena de morte em todo território francês. Permanecem sendo usados em inúmeros países: o fuzilamento, herdado da tradição militar; o enforcamento etc. A injeção letal e a câmara de gás são coisas dos EUA. O uso do gás para matar ficou famoso durante a Segunda Guerra, como forma de eliminar civis e militares presos nos campos de concentração nazistas.
A primeira experiência do uso do gás na Alemanha de Hitler (1933-1945) foi feita contra os próprios alemães. Dezenas de milhares de deficientes físicos e mentais foram eliminados por meio desse recurso, entre 1939 e 1941. Um deles era o irmão do atual Papa. O Programa T4, tal como foi denominado pelos nazistas, consistiu no balão de ensaio para eliminação sistemática de prisioneiros políticos locais, soldados inimigos, milhões de judeus, ciganos, civis tomados como reféns, dentre muitos outros. Conformava-se, como antes não se conhecia, a prática de genocídio, tão banalizada em inúmeros conflitos do pós-guerra.
A pena de morte atualmente mais usada no mundo é a execução extrajudicial, esta é bem conhecida dos brasileiros, existindo em inúmeros países. Os índices do Brasil de pessoas executadas, sem julgamento oficial, pelas polícias e por delinqüentes são, quantitativamente, muito expressivos. Com exceção dos países que vivem guerras civis ou contra o narcotráfico, será difícil encontrar os mesmos números em outros lugares. Por aqui, mata-se todo dia, deliberadamente ou por ‘acidente’ de serviço. Alguns corpos podem ser enterrados por suas famílias, outros desaparecem da face da Terra. Já haveria no país a profissão em ascensão de carrascos especializados não só em matar, como em fazer sumir os vestígios dos que foram vivos. Tem-se a triste memória que jamais deverá calar dos 144 mortos insepultos da ditadura.
A lapidação no Irã, bem como outras penas de morte terríveis de outros países, é algo brutal, bem como as demais execuções oficiais e oficiosas obtidas pelos meios ‘limpos’ do mundo atual. O caso iraniano não deveria causar espanto especial, em um mundo repleto de violências de todo o tipo. É difícil dizer que este atentado aos direitos humanos, existente no Irã, seja algo isolado. Em outras culturas, existem casos, talvez aparentemente menos bárbaros, mas igualmente cruéis. Está correto combater a lapidação como a pena de morte em geral e clamar pela erradicação de todas as formas de execução. Falar em direitos humanos é defender a mesma plataforma básica para todas as culturas e nações. O relativismo cultural, sempre invocado pelos conservadores, serve para defender ordens sociopolíticas contrárias ao bem-estar das maiorias. De outro mirante, a islamofobia contemporânea tende a dar excessivo valor aos problemas dos países muçulmanos e diminuir a importância da barbárie quando é praticada por não seguidores de Alá.
No Brasil, a pena de morte legal desapareceu há mais de cem anos. Foi fartamente usada na época colonial e no Império. Colonos brancos de várias cepas e escravos indígenas e de origem africana foram vitimados por penas aplicadas sem dó e nem piedade. As idéias do exemplo e da vingança ficaram tragicamente registradas nas páginas da história do Brasil. Desde a República Velha, ela já não mais aparece em nossos diplomas legais. Isto não impediu que continuasse a ser usada, como antes. Agora, tudo é feito com o cuidado de escondê-la ou disfarçá-la, quando praticada pelo Estado. Ninguém mais é formalmente condenado à morte por qualquer meio. Todavia, é muita hipocrisia deixar de lembrar que o procedimento continua vivo, como nunca. Infelizmente, um dos vícios da cultura brasileira é o de negar o óbvio e de postergar ad infinitum a solução de antigos problemas.
O espelho da barbárie existente nos países muçulmanos deveria ser usado para se discutir os motivos da persistência histórica de antigos costumes lá, como em todo o planeta Terra. Deveria, igualmente, servir para se atacar e tentar erradicar todo e qualquer tipo de tratamento desumano e degradante, praticado em qualquer quadrante do mundo atual. Facilmente, se podem levantar transgressões aos direitos humanos cometidas pelos países mais ricos e pelas culturas mais letradas. A barbárie não é privilégio de nenhuma etnia ou religião, a não ser que se aceitem os critérios racistas. A questão dos direitos humanos não deve ser compreendida como algo válido somente para as culturas que os propuseram. Ao levantar esta bandeira, nenhuma formação histórica nacional está livre de ser examinada em suas mazelas. O resto é hipocrisia pura, esta, moeda corrente no mundo contemporâneo.
Luís Carlos Lopes é professor e escritor.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4736&alterarHomeAtual=1
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