domingo, 15 de agosto de 2010

Quase negro, quase branco


Durante esta semana,estarei muito ocupada resolvendo problemas inadiáveis. Aproveito para trazer ao blog um especial do Jornal do Commercio, de Recife. A reportagem é longa e portanto trarei em capítulos. Nos intervalos, eu posso publicar outras coisas mas o foco da semana será a reprodução deste especial.
ML




É tão perigoso quanto delicado falar sobre raça no País dos miscigenados. Afinal, quem são os “claros” e os “escuros” em uma sociedade onde a cor da pele é antes de tudo uma construção? Onde, entre 2007 e 2008, sumiram das estatísticas nada menos que 1 milhão de negros e 450 mil brancos (que deram lugar a 3,2 milhões de autodeclarados pardos)? Neste projeto duplo realizado para marcar os cem anos da morte do abolicionista Joaquim Nabuco, o Jornal do Commercio mostra como negros que vivem em condições favoráveis simplesmente “embranquecem” socialmente, enquanto brancos que vivenciam a pobreza, ao contrário, “escurecem”. O preconceito racial, no entanto, ainda é percebido mesmo entre os pretos mais ricos – por isso, quase brancos – enquanto os de pele clara contam apenas com a brancura como um bem de prestígio. São quase negros. Aqui, a história de dez personagens mostra como esse fenomeno acontece no dia a dia.


A COR DE UM PAÍS


Eu sou preta, mas bela, filhos de Jerusalém; como as tendas de couro escuro, como os cortinados suntuosos. Não vos incomodeis se sou morena, se o sol me tisnou. Meus irmãos curtiram a minha pele; puseram-me a guardar as vinhas, e a minha própria vinha não guardei.” São versos bíblicos do Cântico dos Cânticos, a mais bela canção de Salomão. Mas, seria possível que tanto tempo antes do cristianismo, quando o povo de Deus buscava seus próprios caminhos, já houvesse distinção racial e se questionasse a cor do ser vivente? A pela escura tisnada pelo sol? Nós já temos cinco séculos de história – é um período curto no caminhar da humanidade. Mas, nestes 500 anos, em mais de 400 deles misturamos de tal forma nosso sangue, suor e sentimentos que há muito não sabemos se nosso povo é quase branco ou quase preto, posto que já não é mais preto nem é branco. Ele é apenas igual, compartilhando a ventura e as desesperanças.

Este é o tema que do projeto especial duplo que hoje estamos entregando aos leitores do Jornal do Commercio. Foi pensado para marcar os cem anos da morte de Joaquim Nabuco: o primeiro caderno traz a questão racial discutida entre negros e brancos, enquanto o suplemento Um pé no salão, outro na senzala traz o legado histórico, cultural, político e sociológico do abolicionista, o grande estadista do Império que nasceu na manhã de um dia 19 de agosto, ainda na primeira metade do século 19.

Os textos destes dois cadernos-irmãos são de Fabiana Moraes, nossa premiada repórter que coloca no seu currículo dois Prêmios Esso de Jornalismo (um regional e outro nacional, conquistado em 2009, o maior da premiação). No primeiro, Fabiana entrevistou 10 personagens, cinco deles de pele clara, outros cinco de pele escura. Nos diálogos francos que se travaram entre entrevistados e entrevistadora, sentimos que as condições de pobreza de cada personagem branco são um fator de peso na discriminação disfarçada e consentida que ultrapassa mesmo a cor da pele. Sentimos também o que é a difícil “aceitação”, por parte da elite branca, de um ministro negro no Supremo Tribunal Federal (STF), como é o caso de Joaquim Barbosa: sua presença parece nunca ter sido totalmente absorvida pelos próprios colegas. É duro? É, sim – mas dizia Gandhi que “a verdade às vezes é dura como o diamante, às vezes é frágil, como a flor do pessegueiro”. Assim, por que são tão poucos os padres negros na Igreja Católica, aquela para quem todos são iguais perante Cristo? São iguais também na miséria muitos irmãos brancos, que nasceram e se criaram nos tantos bolsões de pobreza que circundam o universo da cidade grande. São discriminados pela condição social.

Para Fabiana, que viajou, conversou e discutiu com sociólogos, antropólogos, economistas e historiadores, que esteve nos salões atapetados do STF, mas foi também no enclave paupérrimo de um quilombo em Pernambuco, o racismo, infelizmente, “é bem mais perverso do que imaginamos”. Os negros que conseguem romper o cordão de pobreza lutam para serem aceitos no mundo dos brancos. No legado dessa miséria comum, os brancos pobres, descriminados pela condição social, tem como saldo apenas a cor da pele. Sabemos que é impossível discutir e escrever sobre um tema tão apaixonante sem evocar a figura ilustre de Joaquim Nabuco, ele mesmo um homem complexo, fruto de um tempo idem. Essa dualidade é percebida dentro do caderno em formato tabloide encartado neste Quase brancos, quase negros.

Discutimos esse pernambucano tão ilustre, cujo nome é quase sinônimo da luta pelo fim da escravidão, e que esteve ao lado da Princesa Isabel quando foi sancionada a Lei Áurea. Nabuco é visto por ângulos pouco explorados e conhecidos, quando se descobre a riqueza da sua contribuição, vital para o entendimento da sociedade contemporânea. Uma sociedade que cobra e carece de uma sistema educacional muito mais eficaz, que tem consciência da perversa concentração de renda que nos estigmatiza, que nunca teve uma política fundiária compatível com um país de 8 milhões de quilômetros quadrados. Tudo isso os dois cadernos vão mostrar.

Complemento dizendo que as belas fotos que ilustram o trabalho são de Heudes Régis, as ilustrações da autoria de Pedro Melo e o trabalho gráfico primoroso de Andréa Aguiar. Tenho certeza de que a leitura será prazerosa para todos.

Ivanildo Sampaio, diretor de redação (JC)

Sorria, você está no mundo da pele clara


Os negros deixarão de existir no Brasil daqui a menos de dois anos. O desaparecimento da cor no País está previsto para 2012. Também haverá a drástica redução de mestiços, que serão apenas 3% da população. Seremos uma enorme nação de brancos. A previsão não é nova: ela foi apresentada em 1929 pelo respeitado antropólogo Roquette-Pinto durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, no Rio. Outro intelectual de renome, João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional, mostrou antes esse mesmo “futuro brilhante” no Congresso Internacional das Raças, realizado em 1911. Utilizou as premissas do primeiro, seu colega e também antropólogo, que se baseou nos censos de 1872 e de 1890 para sustentar o branqueamento do Brasil. Muitos brasileiros, é claro, ficaram extremamente incomodados. Primeiro, porque Lacerda mostrou lá fora, e logo na Europa, dados que revelavam um Brasil negro demais. Segundo (e mais grave): ainda seria preciso esperar cem anos para que pudéssemos caminhar felizes entre gente como os “tipos puros e belos do Velho Mundo”, como quis o crítico Silvio Romero?

O fato é que a ciência pode decepcionar mesmo os corações e mentes mais crédulos, como perceberam os três intelectuais. (Romero foi um dos mais desiludidos ao ver que seu sonho de tez clara não ia acontecer.) Sofreram uma dura e simbólica prova do tempo, que os transformou em ingênuos. Ela está baseada não apenas em números, mas em todo o processo social e histórico pelos quais a Nação passou nas últimas décadas. Pela primeira vez no País, mais da metade da população se declarou afrodescendente (negra ou parda), segundo divulgou no ano passado a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE). São 50,3% os de pele escura (43% pardos e 6,5% pretos). Não é pouco. Em 1940, 60% afirmavam que eram brancos para o mesmo instituto. Em 2006, 42,6% se dizia preta ou parda. Parece que vai deixando de ser um problema não parecer com os “belos” do Velho Mundo, uma realidade que muitos relacionam a fatores como a crescente queda na taxa de pobreza no Brasil, a entrada significativa de afrodescendentes nas escolas e universidades, a presença de pretos e pretas na publicidade, na TV, nas novelas, estes instrumentos que atuam quase pedagogicamente no País.

Há, porém, uma enorme ironia na situação: muitos dos negros que atingem locais de destaque simplesmente embranquecem – e não estamos nos referindo à cor da pele. Ao se afastarem das posições comumente atreladas aos “escuros” (o trabalho braçal, o espaço do servir) e ao se aproximarem de esferas cujo domínio é branco, tornam-se, quase, iguais. Pinto, Romero e Lacerda ficariam fascinados com o processo. Ele não é simples: são necessárias diversas e silenciosas negociações. Para participar do “mundo dos brancos”, observou o sociólogo Florestan Fernandes já nos anos 70, negros e mestiços precisam em vários momentos se submeter a um branqueamento psicológico, social e moral. As portas desse universo de pele clara não estão exatamente fechadas – para ultrapassá-las, basta a adesão a outros códigos, basta mostrar a velha e esperada cordialidade, aquilo o que o pesquisador Ronaldo Sales, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), chamou de “Complexo de Tia Anastácia”. “É a síndrome do negro que é aceito apenas enquanto fica no lugar que lhe é reservado.” Sim, estamos falando de uma integração. Mas ela, antes de tudo, é subordinada.

O contrato de adesão ao mundo dos brancos tem outros itens. Quem atinge esse posto de prestígio tem ainda a missão de servir como exemplo, é o ícone que comprova: não somos racistas. Confirma-se o Brasil cuja “democracia racial” é questionada há quase 40 anos no meio acadêmico, mas que ainda prevalece na rua, no ônibus, na escola, em casa. É só olhar: lá no Supremo Tribunal Federal (STF) não tem um ministro negro? No desfile daquela grife famosa não havia uma moreninha em meio às branquinhas? Na novela não apareceu uma Helena preta? E, para provar que não é só aqui que os negros têm vez, há aquele homem simpático e “de cor” que hoje ocupa a presidência dos EUA. Tais exemplos são utilizados continuamente para sustentar o discurso da inexistência da discriminação racial. Ao mesmo tempo – e é aí que eles são particularmente poderosos –, mostram como exceções apenas confirmam a existência de uma regra. O ineditismo dos negros no mundo dos brancos não nos faz menos discriminatórios, e sim o oposto.

De vez em quando, chega a conta cobrando a passagem pela porta dos claros. É aí que os quase brancos têm o “quase” sublinhado. Em junho deste ano, na última São Paulo Fashion Week, a modelo pernambucana Emanuela de Paula recebeu a sua. Décima primeira top mais bem paga do mundo em 2009 de acordo com a revista Forbes, ela estava em um camarim quando, revelou à imprensa, foi chamada de “macaca”. A lógica que explica o insulto é simples: você pode ser linda, milionária, pode compartilhar aquele espaço glamourizado e majoritariamente branco. Mas continua negra, e, por isso, “macaca”. O ministro Joaquim Barbosa (STF) também lidou com várias destas faturas até tomar posse no Supremo – e elas continuam a chegar ao seu gabinete. A raridade de sua presença em um alto escalão da Justiça brasileira não está livre de tensões, como demonstrou o famoso comentário da também ministra Carmen Lúcia: “Esse [Joaquim Barbosa] vai dar um salto social agora com esse julgamento”. Referia-se ao fato de o ministro ser relator, em 2007, do escândalo do mensalão, como foi chamada a “mesada” paga a deputados federais para que estes votassem a favor de projetos do Executivo. Aqui, novamente nos deparamos com um raciocínio simples: fale várias línguas, realize um doutorado na Sorbonne, prepare um respeitado relatório transformando em réus 40 importantes nomes da política nacional. Torne-se ministro, contrariando o futuro esperado para um filho de pedreiro. Todos esses feitos são louváveis, mas a sua pele negra nos informa que você ainda não atingiu o Grande Degrau Social.

Os exemplos protagonizados por Emanuela de Paula e Joaquim Barbosa revelam que o racismo entre negros de alto prestígio pode ser extremamente perverso, porque quase invisível. Porque, é claro, dirige-se logo àqueles que são observados como “felizardos”, os “bons exemplos” de uma falsamente tranquila miscigenação. Os perfis do padre Clovis Cabral, da ialorixá centenária Estelita Santana e da professora norte-americana Barbara Carter (que viveu o tempo da discriminação institucionalizada em seu país) também mostram, nas próximas páginas, como as barreiras que distinguem pretos e brancos não deixam de existir apesar da importância de seus lugares e conquistas. A classe mais alta pode fazer com que a cor negra tenha menos peso, produz o tal embranquecimento, mas ela não nivela aqueles que dividem. “Se você é bem-sucedido, termina sendo menos negro do que é. No entanto, no fim, é a cor que dá conta de tudo, do corpo e do lugar social”, diz Ronaldo Sales.

O antropólogo Ivo de Santana estudou, em Salvador, uma “elite negra” que pôde adentrar em cursos como direito, medicina, estatística, engenharia, letras, alguns deles com pós-graduação realizada fora do País. Percebeu ali os sutis mecanismos de discriminação racial que, como ele escreve, se colocam apenas àqueles que conseguem acessar locais de prestígio, e não à maioria dos que ficam de fora. A tal sutileza, porém, não é comum a todos: uma de suas informantes, que foi morar num condomínio de classe média alta, enfrentou uma série de constrangimentos racistas, que culminaram com uma carta ofensiva deixada sob sua porta. Precisou mover uma ação judicial para que a presença de sua família fosse tolerada (“tolerada”, importante frisar). Ela e os negros que aparecem perfilados neste especial se negaram a realizar, em diferentes níveis, o pacto que exigia o embranquecimento deles. Não assumiram, como tantas vezes é observado entre esta população específica, uma postura de cordialidade, o que os transforma em atores essencialmente políticos. Ao defender temas polêmicos como as cotas em universidades – e até nas passarelas – eles demonstram que, apesar de vivenciarem condições quase utópicas para a maioria dos afrodescendentes, não romperam os laços de solidariedade com os outros “de cor”, uma realidade bastante comum, segundo escreve Silvio Luiz de Almeida, advogado e vice-presidente do Instituto Cidadania Democrática (ICD/SP). “Ao adentrar as estruturas que possibilitam a 'ascensão social', o negro muitas vezes passa a servir à causa da opressão, mas sem nunca deixar de ser oprimido.”

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SERVIÇO
O negro no mundo dos brancos (Florestan Fernandes, 1972); A mobilidade social dos negros brasileiros (Rafael Guerreiro Osório. Brasília, agosto de 2004, IPEA); Uma história de branqueamento ou o negro em questão (livro organizado por Andreas Hofbauer); À margem do centro: ascensão social e processos identitários entre negros de alto escalão no serviço público – o caso de Salvador (Ivo de Santana, UFBA); O acesso à universidade e a emancipação dos afro-brasileiros (Silvio Luiz de Almeida, USP); Roquette-Pinto: uma vida dedicada ao progresso da nação (Andreas Hofbauer); Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE), 2009

Fonte: http://www2.uol.com.br/JC/sites/especial_joaquimnabuco/html/materia

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