terça-feira, 17 de agosto de 2010

Quase brancos, quase negros


continuação caderno especial JC/Recife



O BRANCO TOMÁS

Em 1869, o Preto Tomaz livrou-se da pena de morte ao ser defendido por Nabuco. Em 2010, um ex-detento de pele clara tenta se livrar do preconceito e da falta de emprego

Tomás é um rapaz bonito da Zona Sul do Recife. Cresceu naquilo que costumam chamar de bairro nobre, “o metro quadrado mais caro do Estado”. Fala um pouco de italiano, estudou a língua na adolescência. Gosta de ir à praia. Tem carro. Cresceu com a família em uma quitinete localizada no bairro nobre. Sempre conviveu com os rostos felizes da família branca vista na placa que anunciava o próximo maior apartamento de seu bairro. Eram, como ele, “de boa aparência”. Estudou em escola pública, passou uma época vendendo sanduíche na praia. Hoje, remove resto de construção, vende um ou outro bem para sustentar ele, a mulher e o filho de 10 meses. Aluga o carro que tem mais de 15 anos e há tempos precisa de uma série de reparos.

Ao lado da desqualificação e da discriminação social do trabalho braçal, visto com grande desprezo, contrapunha-se o não trabalho ou o lazer aristocrático, exercido com arrogância sobre as camadas subalternas. O modo de agenciamento, de organização e de controle do trabalho constituem, desde o período colonial, um dos mais importantes eixos de dominação na sociedade brasileira e podem ser computados como uma das formas centrais para a constituição da violência estrutural que submete grandes setores da população, impelindo-os para uma permanente situação de risco social.

“...E ao ouvir o silêncio sorridente de São Paulo/ diante da chacina/111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos/ ou quase pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres/E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos...” (Gilberto Gil/Caetano Veloso)O garoto louro da beira-mar passou os últimos quatro anos em pavilhões dos presídios e centros de detenção da Região Metropolitana de Recife. Numa espécie de tour de pouquíssimo prestígio, conheceu as “quatro Alemanhas”: o Centro de Observação Criminológico e Triagem Professor Everardo Luna, o Cotel (1.887 detentos, capacidade para 311), o presídio Aníbal Bruno (3.465 presos, capacidade para 1.140) e as penitenciárias Barreto Campelo (1.383 detentos, capacidade para 1.448) e a Agroindustrial São João (1.857 presos, capacidade para 630). Portava 15 papelotes de maconha quando foi abordado por um policial militar numa manhã de quarta-feira.

No tocante à suspeita, a polícia deixou de suspeitar de indivíduos e passou a suspeitar de categorias sociais. Por exemplo, quanto a parar e revistar: é mais efetivo suspeitar de categorias consideradas mais propensas a cometer infrações (e.g. negros, irlandeses, homens jovens da classe operária) do que suspeitar de indivíduos. Joga-se o arrastão em águas de resultados mais prováveis e ricos, em vez de tentar a sorte de achar a ‘maçã no cesto’, isto é, de efetuar prisões procedendo na base de indivíduo por indivíduo (...). A velha evocação ‘prenda os suspeitos de sempre’ se transforma em ‘prenda as categorias de sempre’: suspeita individual passa a ser suspeita categórica.

Tomás, que queria se formar veterinário, foi autuado em flagrante e preso por tráfico. Era usuário desde a adolescência, comprava o produto com o dinheiro ganho na banca de frutas na qual trabalhava. Até hoje, enquanto cumpre pena em regime aberto – precisa se apresentar mensalmente na Chefia de Apoio a Egressos e Liberados (Cael) - nega a venda e conta que às vezes apenas dividia a droga com outros colegas. “Chamava o pessoal, comprava cerveja, ficava conversando, ouvindo música.” Mesmo se colocando como simples usuário, ele não se livraria de uma penalidade: a prática de dividir a maconha com os amigos, por exemplo, também se constitui em crime na legislação penal brasileira, onde a pessoa que oferece drogas, mesmo eventualmente e sem objetivo de lucro, pode ser detida (seis meses a um ano), além de pagar multa de R$ 700 a R$ 1.500 (Lei 11.343/06).

(...) A problematização do crime não apenas contribui para estender as fronteiras da criminalização, mas também para limitá-la. É o caso da existência de diferentes grupos de pressão em busca da introdução de uma série de descriminalizações. Sejam exemplarmente citados os movimentos tanto para legalizar determinadas drogas (a maconha, por exemplo) como para restringir o uso de outras (por exemplo, o tabaco). A problematização colocou, assim, a definição do crime como estando permanentemente sujeita ao debate público.

Uma vez preso, o rapaz que agora integra o exuberante número de 337 mil trabalhadores desempregados em Pernambuco (números do Dieese para março e abril de 2010) passou a sofrer um tipo de discriminação racial às avessas. Era um dos poucos brancos em meio a multidão de negros e pardos cuja liberdade foi suspensa institucionalmente. “Eu assim, galego, recebendo visita, alguma coisa devia ter.” A ideia altamente discriminatória da “boa aparência”, que historicamente o ajudaria a conquistar um emprego mais rapidamente do que um homem negro, o transformou numa espécie de “provedor” natural das celas onde viveu. No Aníbal Bruno, por exemplo, ele era o único de pele clara num espaço onde dormiam 35 presos. “Chegavam para mim e diziam: 'Tô precisando de dinheiro, arruma aí'. Se você não consegue, ganha um inimigo, corre risco. Eu não demonstrava medo, dizia que estava precisando também, que tinha mulher e filho para cuidar”. O manual de bons modos dentro do sistema carcerário começou a ser incorporado logo no início do tour pelas “Alemanhas”, iniciado no Cotel. Das 58 celas do centro de triagem, foi levado para aquela conhecida como a dos “tarados, pedófilos, doentes e noiados”. O último termo é utilizado para designar os viciados em crack. “Eu sou um vencedor, não entrei no vício da pedra.”

Com efeito, a universalidade do crime revela, ao mesmo tempo e pelo negativo, a seletividade da Justiça criminal. Se o crime é endêmico e se o mesmo se encontra em “todos os lugares”, em todas as classes sociais, aqueles que são punidos não são expressão dessa universalidade. Para Young, “(...) o sistema criminal seleciona ‘amostragens’ particulares cuja base não é aleatória, mas o próprio estereótipo”. Esta evidência contribuiu para transformar a criminologia em disciplina suspeita.

O raro “Galego” preso em Pernambuco aprendeu a negociar a sobrevivência em meio a uma enormidade de presos cujos nomes eram quase sempre genéricos (e que também tentavam se manter vivos dentro dos pavilhões): “Negão”, “Nego Fulano”, “Veado”, “Cego”, “Garanhuns”. “O defeito físico e o lugar onde nasceram servem de nome para identificar o outro lá dentro”, diz Luíza, mulher de Tomás. Curiosamente, optar pelo “defeito” no corpo e pela cidade ou Estado de onde os presos vieram serve também para localizar melhor os colegas de presídio, já que “Negão” podia ser quase qualquer um dos encarcerados. A quantidade de pretos só não é maior porque vários deles são calados na rua: dos crimes cometidos no Recife, 68% são contra jovens entre 15 a 29 anos. Desses, 92% das vítimas são jovens negros. Envolvidos ou não com drogas, estudantes, desempregados ou trabalhadores, com um histórico que pode levá-los aos pavilhões ou, ao contrário, à universidade, eles são dizimados pelo filtro da bala. Também são assassinados dentro das unidades prisionais, a exemplo de um que foi morto na frente de Luíza, domingo, dia de visita. Era um “coelho”, o cara que pega o pacote de maconha jogado dentro dos presídios para levá-lo até o preso que comercializa a erva. “O tiro entrou e saiu pela barriga.”

Como se pode observar, o Brasil tem sido um grande mestre na elaboração e execução de práticas de exclusão de sua população “plebeia”. Apesar de todos os movimentos sociais e de toda a modernização política, econômica e social que marcaram o século 19, a sociedade brasileira encontrou novos mecanismos para marginalizar grande parte de sua população, lançando os ex-escravos à sua própria sorte.

Quase livre, o Branco Tomás diz que é hora de esquecer o que sofreu, que aprendeu muito na prisão, que agora entende uma outra realidade. “É preciso ter certos medos.” Quase foi morto dentro do Aníbal, em grande parte pela antipatia de outro preso, que via a cor do rapaz como uma afronta. Era dia de rebelião, ele aproveitou a confusão para se esconder dentro da igreja no interior do presídio. Nesse caso, foi Jesus, e não Nabuco, que o livrou da morte, como aconteceria com o Tomaz preso na Casa de Detenção do Recife e julgado no dia 24 de junho de 1869 no Tribunal do Júri. Condenado à pena de morte, havia assassinado dois, o negro conseguiu manter-se vivo após o então estudante de direito defendê-lo. “Não cometeu um crime: removeu um obstáculo”, argumentou Nabuco, ressaltando que a supressão da liberdade e os açoites justificavam as atitudes do Preto Tomaz. Com 25 anos, ele ficou preso até a morte, sem nunca mais experimentar a liberdade relativa que conhecera. Já o rapaz da Zona Sul, por bom comportamento, talvez, conscientemente ou não, pela cor da pele, voltou a ir à praia, passeia com o filho que hoje cresce na mesma quitinete onde ele cresceu. Teme que seu rosto no jornal impeça-o de conseguir sua carteira assinada. Luíza fica nervosa e diz que as amigas do trabalho não podem saber. Sabe que o preconceito é a grande barreira para que seu marido hoje consiga um emprego. Tomás cometeu um crime e foi perdoado legalmente por ele. Mas agora precisa remover um enorme obstáculo.

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O famoso caso da defesa do “Preto Tomaz”, como relata Joaquim Nabuco em A escravidão, trouxe grande visibilidade para o estudante da Faculdade de Direito de Recife. Tomás vivia em Olinda e não conheceu o cativeiro, trabalhando como fogueteiro para uma senhora branca. Certo dia, foi preso, amarrado e açoitado em praça pública. Acreditando que o subdelegado da cidade, o farmacêutico Braz Pimentel, fora o responsável por mandar açoitá-lo, assassinou-o. Preso, ele foi julgado e condenado à morte. Fugiu da cadeia e foi preso novamente, agora na Casa de Detenção, onde, durante nova fuga, matou o guarda Afonso Honorato Bastos. Nabuco conseguiu mudar a pena de Tomaz para a prisão perpétua. O caso é tema do livro Joaquim Nabuco e o Escravo Tomaz, que Humberto França, da Fundaj, lança no segundo semestre.

Presos do Brasil: No País, de acordo com a Diretoria de Políticas Penitenciárias (Ministério da Justiça), 37% dos presos se declaram brancos, enquanto 55% se declaram negros e pardos (38% pardos, 17% negros). 1% se declara amarelo, enquanto os indígenas não pontuaram (511). Outras raças: 4%; e não informado: 3%. Os dados são relativos ao ano de 2009. O Brasil tem 473.626 presos.

Medo da polícia: De acordo com o Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), do Unicef, a probabilidade de um adolescente ser assassinado é quase 12 vezes maior quando este é do sexo masculino. Se ele é negro, o risco é três vezes maior em relação aos brancos. Segundo pesquisa do sociólogo Túlio Kahn (que analisou diversas pesquisas de opinião realizadas entre 1995 e 1997, pelo Instituto Datafolha), os negros eram o único grupo que tinha mais medo dos policiais do que dos bandidos .

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SERVIÇO
Os trechos destacados foram extraídos do artigo Criminologia e etnicidade: culpa categórica e seletividade de negros no sistema judiciário brasileiro, de Arim Soares do Bem, doutor em sociologia pela Universidade Livre de Berlim e professor do Instituto Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

O número de presos nas unidades penitenciárias citadas corresponde até a data de 22/5/2010

Fonte:http://www2.uol.com.br/JC/sites/especial_joaquimnabuco/html/html2/materia_02.html

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