Júlia
( 3a. parte)
"Nunca dormi nua. Esse pecado não levo a Deus"
(Julinha)
Em Cedro, Júlia conhece um homem de Baixio, gente de destaque no pequeno povoado. Apaixona-se, larga tudo e vem atrás dele. Lembra-se que chegou ao Baixio, mais ou menos quinze dias, antes do assassinato do dentista Líbio Brasileiro, filho de Cícero Brasileiro, chefe político local.
Tentando saber um pouco sobre o Baixio daquela época, consultei duas fontes (Zé Henrique e Flávio Lúcio) e as informações oferecidas por ambos, compatíveis e complementares, são publicadas a seguir.
O jovem dentista, Líbio Brasileiro, quando terminou seu curso superior foi trabalhar na cidade de Uiraúna, Paraíba, e logo depois se mudou para a cidade de Cajazeiras instalando seu consultório na Praça João Pessoa. Cajazeiras, principal centro comercial e intelectual do sertão da Paraíb, mantinha uma expressiva influência sobre as cidades próximas do Ceará.
Era dezembro de 1953. A política pega fogo porque está no auge a luta pela transferência da sede do município de Baixio para Ipaumirim. Na ocasião, acontece a ordenação de Padre Holanda, filho do Baixio, que escolhe a terra natal para celebrar sua primeira missa. Seu pai, convida Cícero Brasileiro para paraninfar a cerimônia. O político estava em Fortaleza lutando contra a transferência da sede do município proposta por Dr. Francisco Vasconcelos de Arruda e seus correligionários políticos de Ipaumirim. (Você pode encontrar mais informações sobre a transferência da sede do município no artigo “A reforma administrativa de 1953”, de Mozart Soriano Aderaldo, publicado na Revista do Instituto do Ceará. Disponível no seguinte endereço: www.institutodoceara.org.br/.../1953/1953-ReformaAdministrativade1953.pdf . O nosso blog já publicou esse artigo.)
Diante da impossibilidade de comparecer ao evento religioso, Cícero Brasileiro telegrafa para o seu filho, Líbio, pedindo-lhe para representá-lo na solenidade. Líbio chegou ao Baixio por volta de 6h. Quando o Padre Manoel Carlos de Morais, vigário da comunidade, soube da sua chegada, avisou imediatamente a Dona Doca, mãe do rapaz, que não aceitava a presença do seu filho na cerimônia por ele ser maçom.
Líbio juntou-se com Otílio (não sei o sobrenome mas os mais antigos conhecem, ele era o marido de Adautiva, famosa costureira de Ipaumirim, genro de D. Aurora) e passaram o dia bebendo num bar. Por volta das 18horas, chega um soldado novato, vestido à paisana e começa uma confusão que terminou com o soldado baleando Otílio e matando Líbio Brasileiro.
Líbio é retirado às pressas da cidade para Cajazeiras e, no caminho, passa na farmácia de Ernani Dore, em Ipaumirim. Dona Maria Leite da Nóbrega, esposa de Luiz Leite da Nóbrega, envia para a farmácia vários lençóis para envolver o jovem ferido que perdia muito sangue. Luiz Leite da Nóbrega e Cícero Brasileiro eram inimigos políticos e, naquela ocasião, estavam em lados opostos da ferrenha batalha política local. Não foi esta a única vez em que a solidariedade entre os dois foi maior que suas diferenças políticas. Luiz Leite foi prefeito eleito de Baixio nas eleições de 1947.
Na época do assassinato, surgiram versões diferentes. No lado político de Cícero Brasileiro dizia-se que os adversários teriam encomendado a morte com a intermediação de Joaquim Farias. Estes, por sua vez, afirmavam que a morte não tinha um componente político e que a fatalidade ocorreu em função de um desentendimento típico de mesa de bar, o que acabou se consolidando como a versão definitiva.
No meio de toda esta confusão política, Júlia perde a chance de concretizar sua paixão e estabilizar-se em Baixio.Vai embora para Ipaumirim.
Até então sua vida corre, de estação em estação, nos trilhos da rede ferroviária. A partir daí, sai dos trilhos para as estradas poeirentas do sertão cearense.
Chegando em Ipaumirim, instala-se no cabaré de Roxa e Cesarina pagando uma diária de $ 15,00 com direito a um quarto dentro de casa, café da manhã, almoço e jantar. Ela não lembra com exatidão mas o preço médio dos encontros dava para pagar o quarto e economizar alguma coisa. Às vezes, os mais abastados pagavam um pouco mais e ela ia juntando seu dinheirinho. Algum tempo depois, foi ao Cedro buscar os seus pertences.
Nessa época, haviam , mais ou menos, umas cinco mulheres fixas, que moravam dentro da casa de Roxa. Os quartos avulsos, externos, eram para as mulheres que vinham de fora nas ocasiões de maior movimento. Geralmente, elas vinham de Cajazeiras e se distribuíam entre os cabarés de Cesarina e Ginu Veloso. As festas tinham muitas arruaças mas ela não lembra das mortes. Só fala da morte de Pedro Brilhante, antes dela chegar, no cabaré de Ginu.
A hierarquia interna dos cabarés determinava a distribuição das mulheres pelos cômodos da casa. As mais importantes, mais procuradas, ficavam nos quartos melhores e mais asseados. Geralmente os da frente. As demais se distribuíam nos quartos do fundo. Só tinham três quartos de tijolos, o resto era de taipa. A cama era patente e o colchão de junco. Com o tempo, já instalada em sua casa, Júlia teve um colchão de molas que comprou de D. Esmerina, mulher de mestre Paulo. Essa aquisição fazia a diferença.
Algum tempo depois (Júlia acha que foi em 1954), ela monta seu próprio cabaré que passou a administrar com “mão forte”, como ela mesmo diz. Alugou uma casa de Antonio Piaba. Ao lado, tinha um pé de cajá que ela logo mandou cortar porque juntava muito bêbado. Recebia clientes também durante o dia e com isso aumentava a clientela. Cesarina sempre preferia o atendimento noturno e no cabaré de Ginu tinha muita bebedeira entre as mulheres, o que atemorizava os que exigiam mais discrição para suas travessuras. Quando Ginu deixou, ela começou a fazer festa aos domingos.
Pagava a licença da festa ao delegado que enviava alguns soldados para inibir os excessos quando necessário fosse. Zé Felinto, suplente de delegado, exerceu essa função algumas vezes. Por fora, sempre tinha um agrado para os soldados.
Nessa época, haviam , mais ou menos, umas cinco mulheres fixas, que moravam dentro da casa de Roxa. Os quartos avulsos, externos, eram para as mulheres que vinham de fora nas ocasiões de maior movimento. Geralmente, elas vinham de Cajazeiras e se distribuíam entre os cabarés de Cesarina e Ginu Veloso. As festas tinham muitas arruaças mas ela não lembra das mortes. Só fala da morte de Pedro Brilhante, antes dela chegar, no cabaré de Ginu.
A hierarquia interna dos cabarés determinava a distribuição das mulheres pelos cômodos da casa. As mais importantes, mais procuradas, ficavam nos quartos melhores e mais asseados. Geralmente os da frente. As demais se distribuíam nos quartos do fundo. Só tinham três quartos de tijolos, o resto era de taipa. A cama era patente e o colchão de junco. Com o tempo, já instalada em sua casa, Júlia teve um colchão de molas que comprou de D. Esmerina, mulher de mestre Paulo. Essa aquisição fazia a diferença.
Algum tempo depois (Júlia acha que foi em 1954), ela monta seu próprio cabaré que passou a administrar com “mão forte”, como ela mesmo diz. Alugou uma casa de Antonio Piaba. Ao lado, tinha um pé de cajá que ela logo mandou cortar porque juntava muito bêbado. Recebia clientes também durante o dia e com isso aumentava a clientela. Cesarina sempre preferia o atendimento noturno e no cabaré de Ginu tinha muita bebedeira entre as mulheres, o que atemorizava os que exigiam mais discrição para suas travessuras. Quando Ginu deixou, ela começou a fazer festa aos domingos.
Pagava a licença da festa ao delegado que enviava alguns soldados para inibir os excessos quando necessário fosse. Zé Felinto, suplente de delegado, exerceu essa função algumas vezes. Por fora, sempre tinha um agrado para os soldados.
Todo domingo, dia de feira, tinha um forró que atravessava o dia e entrava pela noite. Júlia mandava buscar Tigre Negro, um forrozeiro de Cajazeiras, e mais algumas mulheres para reforçar o movimento.
As mulheres de Cajazeiras dançavam gafieira muito bem e os homens gostavam. Todas tinham que usar anágua na festa de domingo para dar mais volume ao corpo.
A bebida era resfriada num tanque de água com pó de serra, sal e areia que elas ficavam aguando para não esquentar. Uma vez, tiveram que se abastecer de Biotônico Fontoura na farmácia de Parnaíba, em Baixio, porque faltou Cinzano na cidade. O tira gosto era codorna, nambu, rolinha e galinha.
Júlia administrava o bar, a cozinha e as mulheres. O bar era principal fonte de renda. Num certo domingo sentiu dor de dente e foi ao consultório de Luídio Barbosa que lhe arrancou doze dentes de uma só vez. Júlia nada sentiu e voltou para casa para cobrar a cota e administrar a domingueira. A cota da dança era 5,00. Na segunda feira, seu companheiro, Prato de Barro, ia trocar o dinheiro na loja de Zé Macedo. Durante a semana , os freqüentadores resumiam-se aos homens da cidade.
Seguindo a tradição, dentro da sua casa, só deixava dormir mulher de confiança para receber clientes diferenciados. A bagunça ia para os quartos de fora. Às vezes, apareciam mulheres muito pobres. Júlia não lhes cobrava o uso do quarto mas estas, principalmente, não podiam prestar serviços a homens lisos para o prejuízo da casa não ser maior.
Nas redondezas havia um poço onde elas iam, à noite, banhar-se com os homens. A moral do cabaré não permitia sexo grupal. Todos juntos mas sem maiores estripulias. As práticas sexuais mais ousadas eram sigilosas porque desmoralizavam a casa. Podiam acontecer, sim, mas muito discretamente. Poucos buscavam. Além de secretas, eram bem mais custosas. Sexo oral era a mais cara. As mulheres tinham muito medo de pegar doenças por via oral inclusive através do uso comum de utensílios, como copos e pratos, utilizados pelos seus apreciadores. A louça utilizada por eles era discretamente marcada e lavada posteriormente, mais de uma vez, com água e sabão e a seguir escaldada ainda que fosse por eles utilizada em qualquer outra ocasião. Homossexualismo feminino, embora pouco comum, também já acontecia no circuito da prostituição.
O machismo era a lei. Os homens batiam quando estavam bêbados. Passavam muito ‘xexo’ e quando elas reclamavam, eram humilhadas e apanhavam. Depois que eles se serviam, saíam esculhambando. Elas tinham medo inclusive de dizer de quem estavam grávidas com medo de apanhar.
Para evitar gravidez, as mulheres tomavam água de sal após os encontros. Também acreditavam que o asseio das partes íntimas com permanganato eram um contraceptivo eficaz. Não podiam faltar as garrafadas feitas com jarrinha, cabeça de negro e cabacinha. Quando não funcionavam, elas partiam para a injeção abortiva. Muitas mulheres morriam de aborto nos cabarés das redondezas.
Quando persistia a gravidez, elas ficavam na “vida” até a criança nascer. Acreditavam que a atividade sexual constante amolecia a carne e facilitava o parto. Mas havia uma restrição: as relações eram sempre de lado pra não maltratar o intestino.
Muitas doenças apareciam. Entre elas, cavalo de crista, cavalo liso, cavalo de buraco e ainda o insistente chato que era tratado com Neocid, conhecido remédio para matar piolhos. O chato era uma praga e dava até nos cílios. O farmacêutico Ernani Dore sempre as atendia em suas enfermidades.
Júlia administrava o bar, a cozinha e as mulheres. O bar era principal fonte de renda. Num certo domingo sentiu dor de dente e foi ao consultório de Luídio Barbosa que lhe arrancou doze dentes de uma só vez. Júlia nada sentiu e voltou para casa para cobrar a cota e administrar a domingueira. A cota da dança era 5,00. Na segunda feira, seu companheiro, Prato de Barro, ia trocar o dinheiro na loja de Zé Macedo. Durante a semana , os freqüentadores resumiam-se aos homens da cidade.
Seguindo a tradição, dentro da sua casa, só deixava dormir mulher de confiança para receber clientes diferenciados. A bagunça ia para os quartos de fora. Às vezes, apareciam mulheres muito pobres. Júlia não lhes cobrava o uso do quarto mas estas, principalmente, não podiam prestar serviços a homens lisos para o prejuízo da casa não ser maior.
Nas redondezas havia um poço onde elas iam, à noite, banhar-se com os homens. A moral do cabaré não permitia sexo grupal. Todos juntos mas sem maiores estripulias. As práticas sexuais mais ousadas eram sigilosas porque desmoralizavam a casa. Podiam acontecer, sim, mas muito discretamente. Poucos buscavam. Além de secretas, eram bem mais custosas. Sexo oral era a mais cara. As mulheres tinham muito medo de pegar doenças por via oral inclusive através do uso comum de utensílios, como copos e pratos, utilizados pelos seus apreciadores. A louça utilizada por eles era discretamente marcada e lavada posteriormente, mais de uma vez, com água e sabão e a seguir escaldada ainda que fosse por eles utilizada em qualquer outra ocasião. Homossexualismo feminino, embora pouco comum, também já acontecia no circuito da prostituição.
O machismo era a lei. Os homens batiam quando estavam bêbados. Passavam muito ‘xexo’ e quando elas reclamavam, eram humilhadas e apanhavam. Depois que eles se serviam, saíam esculhambando. Elas tinham medo inclusive de dizer de quem estavam grávidas com medo de apanhar.
Para evitar gravidez, as mulheres tomavam água de sal após os encontros. Também acreditavam que o asseio das partes íntimas com permanganato eram um contraceptivo eficaz. Não podiam faltar as garrafadas feitas com jarrinha, cabeça de negro e cabacinha. Quando não funcionavam, elas partiam para a injeção abortiva. Muitas mulheres morriam de aborto nos cabarés das redondezas.
Quando persistia a gravidez, elas ficavam na “vida” até a criança nascer. Acreditavam que a atividade sexual constante amolecia a carne e facilitava o parto. Mas havia uma restrição: as relações eram sempre de lado pra não maltratar o intestino.
Muitas doenças apareciam. Entre elas, cavalo de crista, cavalo liso, cavalo de buraco e ainda o insistente chato que era tratado com Neocid, conhecido remédio para matar piolhos. O chato era uma praga e dava até nos cílios. O farmacêutico Ernani Dore sempre as atendia em suas enfermidades.
O cabaré tinha suas regalias. A roupa era lavada por Olindina, Maria Santana e Maria Antonia. A empregada chamava-se Lourdes de Antonio do Monte, uma mulher madura que cuidava das lides domésticas e, vez por outra, era cantada pelos freqüentadores mais jovens.
Época de férias estudantis eram sempre divertidas. A rapaziada tinha muito humor e muita tesão. Só não tinha dinheiro. Era preciso negociar, reconsiderar a tabela de preços e os critérios de pagamento. As coisas se arranjavam da melhor maneira. Para a mulher não ficar no prejuízo total, Júlia não lhe descontava o almoço. Ficavam todos satisfeitos. Júlia ampliava e fidelizava a clientela na base da camaradagem.
Os clientes eram sempre os mesmos mas as mulheres eram nômades, viviam se mudando de um cabaré para outro. Chegavam trazidas por caminhoneiros ou pelos homens da própria cidade. As novatas eram levadas para a rua para atiçar os homens. Carne fresca no pedaço era lucro certo. Menina muito nova podia ser moça (virgem) e dar problema, era preciso comunicar antes ao sargento, policial de mais alto escalão destacado na comunidade.
As instruções eram praticamente um decálogo ao qual todas deviam submeter-se enquanto estivessem na casa:
- Tratá-la por Dona Julinha e obedecê-la em todas as ocasiões e circunstâncias;
- não se apaixonar. “Uma mulher da vida não tem direito de amar, o que elas precisam mesmo é ganhar dinheiro pra brincar e gastar no Crato e no Juazeiro.”
- andar sempre cheirosa e bem vestida
- não dever um tostão nos estabelecimentos comerciais da cidade. Os tecidos eram comprados na loja de Zé Macedo. Perfumaria e demais artigos de toucador eram comprados na mercearia de Dona Cristina Lemos. Segunda feira era dia de pagar as contas.
-manter o preço e o tempo convencional do encontro, fixado pela casa. “Só as cachorras passam a noite inteira com um só companheiro pelo preço de uma única vez.”
- sair só com sua autorização.
- respeitar a polícia e nunca desafiar o delegado. Mesmo quando este as liberava para sair às ruas, elas não podiam sair embriagadas. Cachaça de rapariga tem que ser no cabaré. Na rua não.
- ser discreta pra não perder o freguês.
Época de férias estudantis eram sempre divertidas. A rapaziada tinha muito humor e muita tesão. Só não tinha dinheiro. Era preciso negociar, reconsiderar a tabela de preços e os critérios de pagamento. As coisas se arranjavam da melhor maneira. Para a mulher não ficar no prejuízo total, Júlia não lhe descontava o almoço. Ficavam todos satisfeitos. Júlia ampliava e fidelizava a clientela na base da camaradagem.
Os clientes eram sempre os mesmos mas as mulheres eram nômades, viviam se mudando de um cabaré para outro. Chegavam trazidas por caminhoneiros ou pelos homens da própria cidade. As novatas eram levadas para a rua para atiçar os homens. Carne fresca no pedaço era lucro certo. Menina muito nova podia ser moça (virgem) e dar problema, era preciso comunicar antes ao sargento, policial de mais alto escalão destacado na comunidade.
As instruções eram praticamente um decálogo ao qual todas deviam submeter-se enquanto estivessem na casa:
- Tratá-la por Dona Julinha e obedecê-la em todas as ocasiões e circunstâncias;
- não se apaixonar. “Uma mulher da vida não tem direito de amar, o que elas precisam mesmo é ganhar dinheiro pra brincar e gastar no Crato e no Juazeiro.”
- andar sempre cheirosa e bem vestida
- não dever um tostão nos estabelecimentos comerciais da cidade. Os tecidos eram comprados na loja de Zé Macedo. Perfumaria e demais artigos de toucador eram comprados na mercearia de Dona Cristina Lemos. Segunda feira era dia de pagar as contas.
-manter o preço e o tempo convencional do encontro, fixado pela casa. “Só as cachorras passam a noite inteira com um só companheiro pelo preço de uma única vez.”
- sair só com sua autorização.
- respeitar a polícia e nunca desafiar o delegado. Mesmo quando este as liberava para sair às ruas, elas não podiam sair embriagadas. Cachaça de rapariga tem que ser no cabaré. Na rua não.
- ser discreta pra não perder o freguês.
Não era fácil administrar o cabaré. As mulheres sempre achavam um jeito de transgredir as normas da casa. Quando uma delas usou calça comprida e a saiu andando de bicicleta, a cidade entrou em polvorosa e Júlia foi intimada à delegacia. Elas ameaçavam os homens e mandavam bilhetes exigindo seu comparecimento. Para driblar as esposas dos infiéis, faziam um jogo de troca de mulheres com o cabaré do triângulo. Para complicar, algumas se apaixonavam e entravam no prejuízo.
Pergunto à queima roupa:
- Existe algum homem dessa cidade que você não ficou com ele?
- Eu nunca fiquei com prefeito. Só com vereador, responde sem titubear.
- E da rapaziada, quem você batizou?
- Nenhum com menos de dezesseis anos, responde ela. Nunca fui muito chegada a menino.
- E os amores?
- Muito poucos. Alguns eu gostava mais porque eram amigos e me ajudavam muito.
Os amigos eram os clientes dos discretos atendimentos a domicílio que aconteciam esporadicamente onde ela entrava pela porta dos fundos quando as esposas não estavam em casa. Muitas vezes, ia de jipe fretado para municípios vizinhos.
- Existe algum homem dessa cidade que você não ficou com ele?
- Eu nunca fiquei com prefeito. Só com vereador, responde sem titubear.
- E da rapaziada, quem você batizou?
- Nenhum com menos de dezesseis anos, responde ela. Nunca fui muito chegada a menino.
- E os amores?
- Muito poucos. Alguns eu gostava mais porque eram amigos e me ajudavam muito.
Os amigos eram os clientes dos discretos atendimentos a domicílio que aconteciam esporadicamente onde ela entrava pela porta dos fundos quando as esposas não estavam em casa. Muitas vezes, ia de jipe fretado para municípios vizinhos.
Julia não gostava muito de ir a festas em casas alheias apesar de lembrar com saudades das festas do Icó. Mas as melhores lembranças são daquelas que ela mesma promovia. O seu olhar brilha e sua risada maliciosa toma conta da conversa enquanto ela vai desfiando as lembranças.
- Eu sempre fui vaidosa. Gostava de comprar perfume na bodega de Dona Cristina. Casa Branca (blanca?), Itamaraty e Turbilhão, da Coty, que era o meu preferido. Era a mais disputada e tirada para dançar. Os homens podiam ficar com outras mulheres mas dançar era comigo. Os homens adoravam dançar comigo. Parece que era um imã que eu tinha, diz orgulhosa.
Convencida dos seus atributos e artimanhas, ela rejuvenesce, descontrai e mergulha no que de melhor aconteceu em sua vida. A cumplicidade feminina nos permite boas gargalhadas.
- Tinha gente que até fazia serenata pra mim lá na ponte. Nunca fui muito de me apaixonar mas eu era muito quente, diz com desenvoltura e naturalidade.
Aproveito a descontração e pergunto o perfil da sua clientela.
- Tinha gente que gostava de botar mulher para brigar. Outros davam a vida por uma mulher nova e geralmente eram os mais explorados. Os mais conceituados da cidade entravam pela porta dos fundos para não chamar a atenção. Tinha gente que vinha armado mas eu sempre conseguia desarmar. Já guardei revólver até dentro das calças.
- E seus filhos, Júlia?
- Meus filhos nunca me viram beijando ou sentada em pernas de homem. Elza tinha a vida dela mas morava na casa de Zefa Morena. Seria muita falta de respeito ela morar comigo. Eu tenho temor a Deus.
Júlia ficou na vida enquanto acreditou no seu poder de sedução.
- Depoís dos 60 anos fica mais difícil. Com essa idade, mulher não deve transar porque adoece. Os homens podem. Além do mais, eles só procuravam mulher velha quando gostavam de sacanagem. Mulher velha em cabaré é horrível. Fica desmoralizada.
Saiu da sua casa e foi morar no triângulo, área de prostituição um pouco mais distante da cidade, onde botou uma pequena venda para ajudar na sobrevivência. De lá, foi para Icó e depois para Brejo Santo mas já não tinha cabaré. Vivia de um pequeno comércio.
Voltou para Ipaumirim, morou pras bandas da antiga rua da matança. Foi aproximando-se da comunidade e estabelecendo uma nova relação com as pessoas. Primeiro, com os mais humildes na periferia da cidade. Aos domingos, freqüentava a reunião dos idosos numa casa no centro da cidade, defronte ao largo da matriz, onde hoje, funciona uma escola ou creche. Começou a freqüentar também a igreja católica. As mulheres olhavam de soslaio.
- Eu tinha vergonha porque não podia comungar. Pequei grande, morei num cabaré. A gente pode pecar e fazer o diabo mas sempre tive temor a Deus. Mesmo na vida, eu nunca dormi nua. Esse pecado não levo a Deus. Sempre rezei. Sempre acreditei em Deus e rezei pra Nossa Senhora. Me confessei com o padre, com o bispo, falei com Frei Damião e criei coragem. Pra mim, aquele tempo se acabou e se enterrou de funda abaixo. Só tenho saudade da minha saúde. Hoje, eu só espero a morte.
- Você tem medo de morrer?, pergunto.
- Não mas eu só quero morrer quando Elza se aposentar porque não posso deixar minha aposentadoria pra ela.
- Qual a melhor coisa da vida? pergunto-lhe para encerrar nossa longa conversa.
- Dançar, responde Júlia.
Abraço-a e prometo não citar nomes. À noite, encontro as duas, Júlia e Elza, vindo, juntas, da missa de passagem do ano.
ML
- Eu sempre fui vaidosa. Gostava de comprar perfume na bodega de Dona Cristina. Casa Branca (blanca?), Itamaraty e Turbilhão, da Coty, que era o meu preferido. Era a mais disputada e tirada para dançar. Os homens podiam ficar com outras mulheres mas dançar era comigo. Os homens adoravam dançar comigo. Parece que era um imã que eu tinha, diz orgulhosa.
Convencida dos seus atributos e artimanhas, ela rejuvenesce, descontrai e mergulha no que de melhor aconteceu em sua vida. A cumplicidade feminina nos permite boas gargalhadas.
- Tinha gente que até fazia serenata pra mim lá na ponte. Nunca fui muito de me apaixonar mas eu era muito quente, diz com desenvoltura e naturalidade.
Aproveito a descontração e pergunto o perfil da sua clientela.
- Tinha gente que gostava de botar mulher para brigar. Outros davam a vida por uma mulher nova e geralmente eram os mais explorados. Os mais conceituados da cidade entravam pela porta dos fundos para não chamar a atenção. Tinha gente que vinha armado mas eu sempre conseguia desarmar. Já guardei revólver até dentro das calças.
- E seus filhos, Júlia?
- Meus filhos nunca me viram beijando ou sentada em pernas de homem. Elza tinha a vida dela mas morava na casa de Zefa Morena. Seria muita falta de respeito ela morar comigo. Eu tenho temor a Deus.
Júlia ficou na vida enquanto acreditou no seu poder de sedução.
- Depoís dos 60 anos fica mais difícil. Com essa idade, mulher não deve transar porque adoece. Os homens podem. Além do mais, eles só procuravam mulher velha quando gostavam de sacanagem. Mulher velha em cabaré é horrível. Fica desmoralizada.
Saiu da sua casa e foi morar no triângulo, área de prostituição um pouco mais distante da cidade, onde botou uma pequena venda para ajudar na sobrevivência. De lá, foi para Icó e depois para Brejo Santo mas já não tinha cabaré. Vivia de um pequeno comércio.
Voltou para Ipaumirim, morou pras bandas da antiga rua da matança. Foi aproximando-se da comunidade e estabelecendo uma nova relação com as pessoas. Primeiro, com os mais humildes na periferia da cidade. Aos domingos, freqüentava a reunião dos idosos numa casa no centro da cidade, defronte ao largo da matriz, onde hoje, funciona uma escola ou creche. Começou a freqüentar também a igreja católica. As mulheres olhavam de soslaio.
- Eu tinha vergonha porque não podia comungar. Pequei grande, morei num cabaré. A gente pode pecar e fazer o diabo mas sempre tive temor a Deus. Mesmo na vida, eu nunca dormi nua. Esse pecado não levo a Deus. Sempre rezei. Sempre acreditei em Deus e rezei pra Nossa Senhora. Me confessei com o padre, com o bispo, falei com Frei Damião e criei coragem. Pra mim, aquele tempo se acabou e se enterrou de funda abaixo. Só tenho saudade da minha saúde. Hoje, eu só espero a morte.
- Você tem medo de morrer?, pergunto.
- Não mas eu só quero morrer quando Elza se aposentar porque não posso deixar minha aposentadoria pra ela.
- Qual a melhor coisa da vida? pergunto-lhe para encerrar nossa longa conversa.
- Dançar, responde Júlia.
Abraço-a e prometo não citar nomes. À noite, encontro as duas, Júlia e Elza, vindo, juntas, da missa de passagem do ano.
ML
Ipaumirim
31.12. 2002
Um comentário:
Luiza, muito interessante esse trabalho sobre a vida de Julinha. Salvei tudo e guardei com carinho.
Abraços...
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