Saí de manhã cedo, com o grupo excursionista. O enorme navio branco ficou atracado no porto israelita de Ashood, e nós seguimos de autocarro para Jerusalém. Na Cidade Velha, o guia ergueu o número 15 e avisou que não esperaria por quem se perdesse no labirinto de ruelas que envolve os lugares santos das três grandes religiões monoteístas.
Eu nunca tinha feito um cruzeiro. A percepção que tinha era ambígua. Sentia vontade de experimentar, mas também receio. Há alguma beleza na ideia de entrar numa espécie de cidade flutuante, que atravessa o mar e nos deixa a cada manhã num porto diferente. Por outro lado, a ideia de estar fechado num recinto, cercado de água por todos os lados, sem a possibilidade de escapar e com a obrigação de me divertir, causava-me horror. Um horror ainda maior quando imaginava as excursões organizadas em que teria obrigatoriamente de me integrar para visitar lugares turísticos e de venda de recordações.
Pois confirmaram-se as expectativas. As melhores e as piores. A poesia do cruzeiro existe, o horror também. Naquele momento, porém, depois de termos visitado Atenas e Alexandria, e depois Belém, nos territórios ocupados da Cisjordânia (sem que a guia tivesse explicado por que razão havia um muro e um checkpoint, para além do qual ela própria teria de ser substituída no autocarro por uma guia palestiniana) a sensação dominante era já a claustrofobia. Na minha cabeça só havia um pensamento: fugir.
Aproximámo-nos do Muro das Lamentações, no coração da Cidade Velha. O guia israelita erguia o número 15 e reduzia a complexidade do mundo a três frases ridículas. Eu fui até ao muro e deixei-me ficar, espiando os judeus que em enlevo abanavam a cabeça, de Tora na mão. Deixei-me ficar até observar bem, até sentir a estranheza e familiaridade do lugar, até ter cruzado o meu olhar com os dos velhos rabinos, até... até o guia com o número 15 ter desaparecido, lesto, pelos becos, com o enxame de turistas atrás.
Tentei, é claro, telefonar. Ainda marquei um encontro com o motorista de outro autocarro, que me levaria a Ashood. Mas tudo falhou. O navio, com 1200 pessoas a bordo, não podia esperar. Partiu. Ao cair da noite, eu estava sozinho em Jerusalém.
Vestia uma t-shirt, tinha num bolso o telemóvel, o cartão de crédito no outro. Mais nada. À minha volta, estendia-se, como um lago de luz, a cidade mais cobiçada e mais ameaçada, uma das mais belas e estranhas cidades do mundo.
Começava a ficar frio. Levantei alguns shekels numa máquina multibanco, comprei um pullover com capuz num vendedor de rua. Vaguei sozinho por Jerusalém. Percorri os sectores cristão, muçulmano, arménio e judaico da Cidade Velha. Entrei nos cafés e bares da rua Jaffa, atravessei a pé do bairro oriental ao ocidental, e regressei, de madrugada, à Cidade Velha. Extenuado, entrei num hostel velho e podre chamado Petra. Um negro muito magro, alto e lento, de túnica azul até aos pés conduziu-me a um pequeno quarto sem janelas nem mobília. Pelo caminho, vi alguns turistas (tão diferentes dos da excursão número 15) deitados pelo chão e pelos sofás rotos. Uma mulher de olhos azuis estava acordada, sentada numa cadeira. Cumprimentei-a, mas não me respondeu. Quando olhei para trás ela estava a rir às gargalhadas, sem emitir um som. Em que antro me fora meter. Provavelmente tudo aquilo era assustador, mas eu só sentia a vertigem, a liberdade da minha primeira noite em Jerusalém. Entrei no quarto, deitei-me e adormeci, com a porta aberta.
Fonte: http://reporterasolta.blogspot.com/
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