quarta-feira, 30 de junho de 2010

O sombrio legado de João Paulo II: Os esqueletos saem do armário

(Marco Fernandes,
no Portal Luis Nassif)



Joseph Ratzinger está passando por um ano terrível. Mas o culpado pelo mais recente escândalo envolvendo a Igreja Católica não é ele, e sim o papa mais popular dos tempos modernos, João Paulo II.

Há um paradoxo cruel na carreira de Bento XVI. Quando o cardeal Joseph Ratzinger foi eleito papa em abril de 2005, ele propôs-se a purificar a Igreja Católica e restaurar-lhe os seus valores pétreos. Ele também comprometeu-se a obter a canonização de seu carismático antecessor, João Paulo II, o mais rápido possível. Mas com a eclosão de um novo escândalo no seio da Igreja mordendo os calcanhares da tormenta pedófila, desta vez envolvendo alegações de maciça corrupção no coração da Cúria Romana, a carreira papal de Joseph Ratzinger corre o risco de ser comprometida pelas nuvens escuras do legado de João Paulo II.

Ninguém duvida que o papa preferiria uma igreja mais limpa, mais magra, mais tranquila e mais pura, expurgada de padres pedófilos e carreiristas gananciosos, como ele próprio disse na semana passada. Mas esse homem, que empunha uma vassoura e aponta o dedo acusador contra aqueles que têm uma visão permissiva, tipicamente italiana, da venalidade, esteve ele próprio no centro da igreja durante metade da sua vida. Todas essas pessoas são seus velhos colegas. Se isso é Sodoma, ele foi um de seus cidadãos por quarenta anos.

Tomemos como exemplo o homem no centro do último furacão, o cardeal Crescenzio Sepe. Nascido há 67 anos na periferia de Nápoles, ele cresceu falando o típico dialeto local, incompreensível para quem vem de fora. Alcunhado pelos jornais italianos l'impresario di Dio, ele é hoje o bem-amado arcebispo de sua cidade natal: um prelado bonachão e de ar próspero, que adora o corpo-a-corpo com a sua multidão de admiradores, dando tapinhas nas costas e beijando bebês. Os napolitanos chamam-no afetuosamente de O'guapo, que no falar local quer dizer "o patrão" - o paternal capo mafioso a quem o povo leva os seus problemas, em vez de ligar para a polícia. Apesar de ninguém o estar acusando de cumplicidade com a temível Camorra napolitana, os crimes que pesam contra ele são do tipo que qualquer mafioso pode compreender.

Sepe, que é ainda bastante jovem para um cardeal, teve sob o pontificado de João Paulo II uma ascensão meteórica, que alcançou o seu ápice ao receber o encargo de presidir as celebrações do Jubileu da Igreja da virada do Milênio. Um showman bem ao gosto do falecido papa, ele promoveu um carnaval que Roma não via desde os tempos de Nero, e seu sucesso foi recompensado com uma nomeação para chefiar uma agência da Igreja chamada Propaganda Fide, cujo portfolio imobiliário na área de Roma vale algo em torno de € 9 bilhões. Agora, a Justiça está afirmando que ele vendeu bens desse portfolio a um influente político pela metade do preço de mercado e que, em troca, a sua agência recebeu favores especiais do governo. Essa é uma maracutaia clássica do clientelismo político só que, nesse caso, o personagem central é uma das mais ilustres figuras da Igreja Católica.

Alguns observadores do Vaticano dizem que Joseph Ratzinger detectou as falcatruas de Sepe desde o início, e essa teria sido a razão pela qual o papa não teve cerimônias em removê-lo da Propaganda Fide em 2006 - um cargo tipicamente vitalício - e despachá-lo de volta à sua Nápoles natal. O cardeal nega essa versão de forma tão veemente quanto as acusações de corrupção propriamente ditas. Na semana passada, ele assim falou sobre a oscilação de suas fortunas: "O Santo Padre insistiu muito para que eu ficasse em Roma, mas o meu coração ansiava por retornar a Nápoles." Ainda sobre as suas dificuldades com a Justiça, ele falou amargamente de inimigos "que desejam derrubar-me, tanto dentro quanto fora da Igreja."

É difícil imaginar dois homens de Deus mais distintos do que Sepe e Ratzinger: o carnal e efusivo homem do povo do Mediterrâneo, e o ascético e introvertido amante dos livros da Bavária. Em uma Igreja regulada pelos desejos do atual papa, é também difícil imaginar que um homem como Sepe faça progressos em sua carreira. Mas o detalhe desconfortável para Ratzinger é que os dois homens possuem algo vital em comum: ambos foram escolhidos e promovidos por João Paulo II. E é em torno desse legado ambíguo que uma batalha épica está nesse momento sendo travada por detrás das portas cerradas do Vaticano.

Ele pode ser franzino fisicamente, mas este papa não é do tipo que deixa-se empurrar. Uma vez, quando um repórter da CNN o perseguiu com uma pergunta impertinente, ele respondeu com um tapa no pulso do jornalista. Como o "policial da fé" de João Paulo II por quase 30 anos, ele foi impiedoso com todos de quem discordou - teólogos liberais, defensores da causa dos gays na Igreja, proponentes da teologia da libertação, e católicos complacentes desejosos de um maior ecumenismo entre as religiões. Todos que despertassem as suas suspeitas de estarem tentando turvar as águas cristalinas da fé com idéias modernas metiam-se em uma séria encrenca. Desde que tornou-se papa ele manteve a linha dura, favorecendo a volta do Latim e de padres dizendo a missa de costas para a congregação, o fim do populismo das guitarras elétricas, e um modelo de igreja mais puro e menos contaminado pelo mundo secular, ainda que isso signifique uma igreja com menos membros. No entanto, Ratzinger vem encontrando uma feroz resistência no seio da Igreja, particularmente de alguns membros do alto clero como o cardeal Sepe - justamente aqueles que foram mais regiamente favorecidos por João Paulo II. O papa, enfim, herdou do pontificado anterior um armário repleto de esqueletos.

Primeiro, foi o pesadelo dos padres pedófilos: no início deste ano, advogados de vítimas nos EUA acusaram Ratzinger de cumplicidade no acobertamento dos crimes, e de demonstrar pouca solidariedade aos queixosos. Desde então, o papa vem remando contra uma forte maré. A bordo do avião que o levou a Lisboa no mês passado, ele fez um anúncio indicando uma radical mudança de abordagem da crise da pedofilia. Durante o vôo, ele disse aos repórteres: "Hoje a maior perseguição sofrida pela Igreja não vem de fora, mas do pecado no interior da própria Igreja. Ela tem, portanto, uma profunda necessidade de reaprender a penitência, aceitar a purificação, aprender por um lado o perdão, mas também a necessidade de justiça."

Mais tarde ele reforçou a mensagem e, pela primeira vez, ofereceu humildes desculpas às vítimas. Ele parece estar vencendo essa batalha de relações públicas. Mas se acreditarmos em sua sinceridade, ele encontra-se agora em uma situação muito difícil. De acordo com um especialista em assuntos do Vaticano, ele está "rodeado por pessoas que compartilham a sua política e a sua teologia conservadora, mas não a sua visão quanto à pedofilia." Ele também terá que esclarecer as mudanças ocorridas em sua visão do problema. E até agora ele não deu sinais de estar preparado a dar qualquer um desses passos.

O papa é uma espécie de monarca, mas o seu poder é severamente limitado pelos homens que foram seus colegas quando ele era ainda um cardeal. No seio da Cúria, o órgão governante da igreja, Ratzinger está rodeado por padres tão velhos quanto ele, que têm estado juntos por muitas décadas. Todos eles, obviamente, conhecem todos os podres um do outro.

Todos eles estão de pleno acordo quanto às grandes questões doutrinárias encaradas pela Igreja. Arqui-conservadores tais como João Paulo II, estão todos unidos na crença de que nenhuma concessão deve ser feita aos novos tempos - nenhuma mudança em relação ao aborto, à contracepção, às células-tronco e às outras questões envolvendo a "santidade da vida"; nenhuma alteração tampouco em relação à estigmatização dos homossexuais, às regras do celibato ou à exclusividade masculina do sacerdócio. Eles também estão unidos na crença de que a Igreja está sob o ataque das ímpias compulsões da moderna sociedade de consumo. Os inimigos da Igreja, concordam todos, vêm de fora.

Em relação à pedofilia, no entanto, muitos deles são especialmente vulneráveis. Um deles, o cardeal Angelo Sodano, tem sido por décadas um dos homens mais poderosos da Igreja. De 1990 a 2006, esse corpulento filho de um político piemontês foi o secretário de Estado de João Paulo II, o mais importante cargo do Vaticano, abaixo do pontífice. Afastado do posto por Ratzinger, ele é agora aos 82 anos de idade o decano do Colégio dos Cardeais. Apesar de embaraçado por este último escândalo, continua a ser muito poderoso. Particularmente problemáticas são as relações que teve no passado com um verdadeiro monstro da Igreja moderna, o finado prelado mexicano Marcial Maciel.

Maciel foi o fundador de uma ordem extremamente conservadora denominada Legião de Cristo, e destacou-se pela sua habilidade em arrecadar rios de dinheiro para João Paulo II junto à milionária elite mexicana, mas a sua verdadeira face vem emergindo gradualmente através dos anos, particularmente após a sua morte em 2008. Viciado em morfina ao longo de várias décadas, ele é acusado de abusos sexuais contra seus próprios seminaristas, bem como de estuprar os vários filhos que teve com duas amantes. Apesar de tudo, o sólido prestígio de Maciel junto a João Paulo II jamais foi abalado e, a exemplo de outros figurões da Cúria, Sodano dele recebeu vultosos presentes em dinheiro. Quando o Vaticano foi obrigado a abrir uma investigação contra Maciel em 1998, o cardeal Sodano provou ser um amigo grato e leal, arquivando o processo sumariamente.

Um outro íntimo colaborador de Ratzinger, o cardeal Tarcisio Bertone, que substituiu Sodano no cargo de secretário de Estado, e é um frequente alvo de piadinhas em círculos do Vaticano por sua suposta falta de inteligência, também teve a reputação seriamente manchada por sua amizade com Maciel. Em 2004, quando era Arcebispo de Gênova, ele escreveu o prefácio de uma longa entrevista com o padre mexicano intitulada Minha Vida Em Cristo, no qual louvou "a franqueza de alguém que vive a sua missão... com os olhos e o coração fixos em Cristo Jesus."

Com um olhar no futuro, o astuto Ratzinger nunca aceitou dinheiro de Maciel, e forçou-o a deixar a direção da Legião de Cristo assim que foi eleito papa. Em 1º de maio de 2010, Bento XVI qualificou o padre mexicano de "imoral e criminoso," tendo levado uma vida "desprovida de escrúpulos, de onde o autêntico sentimento religioso estava ausente," e apontou uma comissão para investigar a situação da Legião de Cristo, bem como de sua afiliada laica, a Regnum Christi. O jornalista católico americano Jason Berry porém, autor do mais completo livro sobre Maciel (Votos de Silêncio: O Abuso de Poder no Papado de João Paulo II), argumenta que enquanto Ratzinger não livrar-se de Sodano e de Bertone, a pesada sombra do monstro mexicano continuará a pairar sobre a sua cabeça.

O principal problema de Bento XVI é que ele sempre esteve lá, na cúpula, durante todos os anos em que Maciel foi o favorito de João Paulo II. E ele também apoiou, segundo o comprometedor testemunho de um ex-cardeal, a atitude prevalente dos outros cardeais face à pedofilia. Soube-se em abril passado que o cardeal Dario Castrillon Hoyos, um colombiano que por 10 anos foi encarregado do departamento do Vaticano que supervisiona o clero, escreveu uma entusiasmada carta de aprovação ao bispo de Bayeux, que preferiu ir para a cadeia, do que dar informações à polícia francesa sobre um padre que estuprara um menor. "Eu o parabenizo por não entregar um padre à administração civil," escreveu ele. "Sinto-me honrado em ter um colega que preferiu a prisão, a entregar um filho da Igreja."

O Vaticano confirmou a autenticidade da carta, depois que ela foi publicada em um blog francês. Mas depois o próprio Castrillon acrescentou um detalhe crucial. Em uma entrevista a uma estação de rádio, ele disse que o conteúdo da carta fora aprovado em uma reunião de cardeais, à qual Ratzinger estava presente. "Era um encontro de cardeais," disse ele à rádio RNC. "Portanto o atual papa, que na ocasião era um cardeal, estava presente." Se o papa deseja expurgar a pedofilia da igreja, ele precisará confrontar as figuras comprometidas da Cúria e demiti-las. Se isso é politicamente possível, é uma questão aberta. Sodano, Bertone e sua turma irão lutar como tigres para reter seus privilégios. Além disso, é preciso saber se ele dispõe do talento pessoal e gerencial para fazê-lo. Perguntado a esse respeito, um especialista alemão em assuntos do Vaticano balançou a cabeça e riu. "É claro que não," disse ele. "Ele é apenas um professor!"

Quando Joseph Ratzinger foi eleito há cinco anos atrás, foi encarado como uma figura que garantiria a continuidade após o pontificado de 26 anos do papa polonês. Afinal de contas, foi o próprio João Paulo II quem persuadiu Ratzinger a deixar o Arcebispado de Munique, e vir para Roma para tornar-se o seu principal conselheiro em matéria de doutrina. Com a sua morte, a Igreja Católica perdeu o seu maior comunicador, o papa que mais viajou na História do Vaticano, que inspirou a revolta da Europa Oriental contra o Comunismo, e desfrutou de uma enorme popularidade mesmo entre os não-católicos. Em seu funeral, milhares gritavam, "Santo subito!" (Santo já!). Ele ainda não é um santo, mas não vai demorar. E morto, permanece como objeto de devoção.

Ninguém jamais esperou que o cardeal Ratzinger fosse capaz de replicar o desempenho de Wojtyla, esse alemão introvertido, amante dos livros, com o seu piano, seus gatos e seu gosto por vestes arcaicas. Mas ele foi visto como o homem indicado para proteger o legado de Wojtyla, e conduzi-lo com segurança rumo à canonização. Em vez disso, as galinhas de João Paulo II voltam uma a uma ao galinheiro - o envenenado legado de Maciel - um de seus brutalizados filhos falou de sua bizarra e horrenda infância pela primeira vez na semana passada, e todos os outros casos de pedofilia que gangrenaram durante o seu longo reinado. E agora, a venalidade do cardeal Sepe vem empestar o ar um pouco mais.

Tanto Maciel quanto Sepe gozavam da mais alta estima de João Paulo II. A postura mundana dos dois prelados encontrava ressonância no extrovertido ex-ator e jogador de futebol Wojtyla; para João Paulo II eles traziam vitalidade e energia à Igreja, isso sem falar no monte de dinheiro que arrecadavam. E ele nunca preocupou-se em saber direito o que mais traziam. O papa Bento XVI gostaria que a Igreja Católica fosse bem diferente daquela que inchou além de todas as proporções sob João Paulo II, mais pura, mais bela, mais austera. Mas longe de moldar a Igreja à sua própria imagem, ele agora corre o risco de ver o seu legado fatalmente comprometido pelos pecados de seu santo antecessor. Encarregado de zelar pelo legado de João Paulo II, ele corre o risco de ser esmagado por ele.

Fonte: http://blogln.ning.com/forum/topics/o-sombrio-legado-de-joao-paulo

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