quinta-feira, 25 de março de 2010

O Deus de Odeta


Durante o período comunista, a Albânia foi o mais ateu dos países. A religião foi mesmo abolida oficialmente pelo regime de Enver Hoxha, que declarou a Albânia um “Estado Ateu”.

Duas gerações cresceram sem Deus (se não considerarmos o culto do próprio Hoxha). E quando o regime caiu, em 1990, o sentimento de orfandade foi insuportável.

Houve lutas pelo poder sem regras nem escrúpulos, sórdidas fraudes económicas, motins bárbaros nas ruas. Durante anos, o país viveu na anarquia, sob a égide de um estado mafioso.

Quando isto acontece, muita gente se converte à nova ordem. As pessoas são mergulhadas na lógica do absurdo e começam a respirar essa atmosfera, para não sufocarem. Mas não todas. Há sempre quem mantenha uma sanidade imaculada, sejam quais forem as circunstâncias. Por vezes não se percebe que bússula misteriosa as orienta.

Os pais de Odeta eram assim. Ele era sociólogo e ela professora de inglês. Nasceram no regime comunista, nele foram educados e tiveram de viver, mas nunca perderam o sentido crítico, nem a capacidade de se manterem informados.

Agora, que tudo se desmoronara à sua volta, mantinham a serenidade intelectual que lhes permitia, mais uma vez, sobreviver. Mesmo quando a filha, Odeta, lhes disse, com um ar dramático de adolescente, que queria adoptar uma religião. Não sabia ainda qual, mas contava com eles para a ajudarem a decidir.

O casal discutiu a situação. Sempre foram ateus, embora soubessem que, numa perspectiva histórico-sociológica, o sentimento religioso é recorrente no ser humano. Pareceu-lhes portanto legítima e respeitável a decisão da filha de 16 anos. Odeta era muito inteligente, honesta e uma aluna brilhante. Saberia optar. Ofereceram-lhe vários livros: a Bíblia, o Corão, obras sobre o budismo e o hinduísmo, o Tao Te Ching de Lao Tse e até um volumoso tratado sobre xamanismo.

“Estas são as principais religiões”, disseram. “Lê tudo e tira as tuas conclusões. Se quiseres converter-te a alguma, nós apoiamos-te”.

Odeta fechou-se no quarto durante todo o período das férias de Verão. Leu, sublinhou, tirou notas. Num caderno apontava as frases que mais a impressionavam, noutro registava as contradições que ia encontrando. Com um lápis vermelho, assinalava, nos livros, as afirmações que já tinham sido desmentidas pela Ciência. A cor azul marcava as que lhe pareciam premonitórias de futuros acontecimentos históricos. Num quadro afixado na parede, ia atribuindo pontos, e somando.

Talvez ela não tivesse a noção disso, mas estava a ser protagonista de uma experiência rara. A muito poucos seres humanos foi dada a oportunidade de escolher uma religião, de forma absolutamente livre, sem influências nem preconceitos.

É verdade que isto se passou em 1998, quando começaram a ser conhecidos os massacres dos muçulmanos albaneses no Kosovo. Mas Odeta estava fechada no seu quarto, em Tirana. Lia aqueles livros com o desapego de quem estuda para um exame.

Quando a conheci, ela já tinha decidido. Era muçulmana. “É a religião mais científica”, explicou.

Ainda tentei confundi-la: “Se acreditas na Ciência, para que precisas de uma religião?” Mas Odeta tinha estudado bem a matéria. “Para que a Ciência não seja a minha religião”, respondeu.

Fonte: http://reporterasolta.blogspot.com/

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