domingo, 18 de outubro de 2009

Domingo Memorioso

Alberto de Moura
(...) “Muito ao revés, teria ocupado a velha tribuna da Academia e recitado um soneto – um belo soneto de Alberto de Moura, que trago de cor desde priscas eras. Com isso teria reverenciado nosso patrono, São Francisco e, de quebra, prestado homenagem a um velho amigo, o autor do soneto. Em outras palavras, matado dois coelhos de uma só cajadada.
Alberto de Moura, que saudade! Como o tempo foi veloz! O que estará ele, o poeta, fazendo agora lá no Ipaumirim? Versejando como antigamente ou já aposentado? Se os meus cálculos estão corretos, já deve estar beirando os noventa, e é natural que esteja cansado. Ou será que não? Estará ele, ainda, escrevendo aqueles sonetos que tanto admirávamos?.
Grande Alberto! Parnasiano renitente e, por isso mesmo, conservador, escrevia seus versos com facilidade, mas com rigor bilaquiano. Daí o desprezo pelos modernistas, a quem chamava de charlatães. Com ele era assim, sem papas na língua. O verso branco, em sua opinião, era apenas um simulacro – invencionice de maus poetas que não sabiam, fazer soneto. Ninguém lhe viesse com poesia sem rima. Ele simplesmente virava o rosto e recusava-se a ler. E como era cioso da própria reputação! Nunca pude esquecer a fúria incontrolável que lhe causavam os erros de imprensa. Se, por qualquer motivo, quebravam-lhe um verso durante a transcrição, era um deus-nos-acuda. Não perdoava o editor, cobria-o de insultos e passava dias maldizendo a sorte.
Como vai longe tudo isso! Corria ainda “a manhã de sol dos meus treze anos”, quando recebi dele as primeiras lições de arte poética. Eu tinha acabado de perder meu pai e entrara em parafuso. Não via como viver sem ele e me agarrara à poesia como um remédio para as minhas dores. Por isso, apelei para Alberto. Não é demais ressaltar que, com apenas treze anos, eu não passava de uma criança enquanto Alberto já era quarentão. Naquele tempo, embora ainda resistisse, a poesia tradicional já começava a ser banida das salas de aula. Alberto, por motivos óbvios, achava isso um “crime hediondo” e punha a culpa nos irmãos Andrade – Oswaldo e Mário – pelos excessos do modernismo: “Esses poetas de meia- tigela vão acabar matando a poesia”, costumava dizer, não sem uns laivos de amargura. Constrangia-o, principalmente, ver que, entre os artífices da Semana de Arte Moderna de São Paulo, despontara Menotti Del Picchia, grande mestre brasileiro do verso alexandrino e autor de poemas sublimes como “ Juca Mulato”, “As Máscaras” e “O amor de Dulcinéia” – uma glória, portanto. Não conseguia compreender por que um poeta de tal porte deixara-se arrastar pela “torrente de empulhadores”.
Tal o caráter do meu meste. O certo é que, evitando referências ao verso modernista, me expôs ele, pacientemente, os principais segredos da arte de versejar. E mais: emprestou-me um livro que me abriria definitivamente as portas da poesia: “Tratado de versificação”, de Guimarães Passos.
Daí por diante, tornei-me poeta ou, pelo menos, versejador. A despeito do tempo, que abriu hiatos em nossa convivência, Alberto de Moura continua um marco em minhas lembranças. Ainda estou a vê-lo de lápis em punho, o semblante grave, olhando fixo para mim e aconselhando com ar professoral: “Tenha cuidado com a chave de ouro: termine-a sempre com um oxítono. Tem mais sonoridade e dá força ao soneto!”.
Mas como tudo nesta vida é ilusão passageira, chegou o meu dia de enfrentar o mundo. O tempo de espera no Ipaumirim tinha, afinal, se esgotado. Urgia partir. Tendo atingido a maioridade, vim para a capital em busca de trabalho. Alberto lá ficou. Só poucas vezes voltei a vê-lo e, ainda assim, por breves momentos. A propósito de versos, ao longo de todos esses anos, uma coisa sempre me intrigou: a obstinação do poeta em recusar-se a publiucar um livro. Terá o pavor dos erros da imprensa influenciado essa sua atitude? Se bem o conheço, é possível que sim, mas deve haver outros motivos. Afinal de contas, quem há de entender as razões e os caprichos da alma de um poeta? Do ponto de vista financeiro, sinceramente, não houve empecilho. O mais importante, aliás, o imprescindível, ele tem de sobra: a produção literária. Calculando por baixo, uma centena de bons sonetos deve esconder-se com avareza entre os seus alfarrábios.
Por tudo isso é que me demoro um pouco mais no remoer lembranças, e peço licença ao nobre leitor para tomar mais dois minutos do seu tempo precioso. É que não fujo à tentação de transcrever “O santo de Assis”, aquele soneto a que me referi no início destas notas:

São Francisco de Assis, o meigo pregador
Das aves, foi de Cristo apóstolo perfeito:
Toda vida o serviu com profundo respeito,
Consagrando-lhe sempre um verdadeiro amor.

Amava seus irmãos com desmedido ardor,
E jamais transgrediu o divino preceito;
De suas santas ações inda não satisfeito,
Tomou mais, para si, as chagas do Senhor.

Com seu grande poder de santo taumaturgo,
Por onde quer que andou, na floresta ou no burgo,
Fez milagres reais em místicos favores.

Um dia, ele abraçou-se a um rude pé de espinhos;
Mas no instante em que o fez, os acúleos daninhos
Tinham se transformado em veludíneas flores.
"
(Alberto de Moura)

Pereira de Albuquerque. O diagnóstico. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2009. pp. 58-61.

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