A intriga e outros irracionalismos substituem a possibilidade de se pensar. No contexto atual, transformou-se a ciência em cargos, postos e egos controladores subordinados a interesses empresariais e pessoais. O belo transmutou-se em mercadoria e perdeu o seu antigo sentido libertador.
Luís Carlos Lopes
A realidade existe independentemente do que se pensa sobre ela. Não necessariamente ela se impõe. Não se vive obrigatoriamente em um mundo de verdades insofismáveis. O mais crédulo de que tudo sabe esbarra em seu próprio pé, caindo, ao descobrir sua ignorância relativa. Como ninguém sabe de tudo, o mais prudente é ter uma atitude de reverência ao saber e de respeito a tudo que não se conhece bem. O desejável é que o novo fosse visto como algo a ser descoberto e não como o que deveria ser negado em princípio.
Qualquer massa em movimento desenvolve-o relativamente aos demais corpos a que está relacionada. Como tudo está em movimento, inclusive o planeta Terra, o que anda, balança, trepida ou simplesmente imagina-se parado, na verdade está oscilando em função das demais coisas do mundo. A consciência humana, igualmente, oscila em função das informações que recebe. Depende também de sua capacidade de processá-las e entendê-las. Pode ou não completar o seu ciclo, produzindo compreensões ou mantendo ignorâncias relativas. O foco é exatamente este resultado, que resume e finaliza a reflexão.
O problema é que se vive no mundo da espiral da intriga. Este lugar fantástico, que se derrama pelo planeta, é onde se vende, por meio das grandes mídias e dos sensos comuns hegemônicos, a idéia ou preconceito de que tudo está resolvido e de que não há nada de novo sob o Sol. Os problemas foram todos respondidos e é ilícito perguntar se uma idéia ou interpretação de um fato possa ser questionada. Os olhares são vistos como portadores da verdade, quanto mais autoridade os seus donos tiverem. As mídias funcionam como os antigos oráculos, dizendo a todos o que é a verdade. Seus consumidores são tratados como clientes e usuários de seus serviços.
A intriga é uma técnica comunicacional milenar. Foi inventada nas mais antigas sociedades complexas e diferenciadas. O bom intrigante é aquele que junta alguns elementos do real com algo fantástico, porém verossímil, e dirigido a impedir a compreensão efetiva. O que ele – pessoa ou instituição – deseja é que jamais se alcance a compreensão total, imaginando-se que a versão disponível é o suficiente e que o entendimento deva ser necessariamente fragmentário e incompleto, servindo aos senhores que disseminaram a intriga.
Apesar de ter elementos da mentira, a boa intriga também diz verdades. Mistura a ambas, dando credibilidade ao que se quer comunicar. Seu objetivo, por vezes, é o de semear a dúvida, destruindo uma outra versão mais realista sobre o mesmo fato. Por outro lado, os intrigantes querem descredenciar autores ou fatos já divulgados. Existem vários modos de impedir que se chegue ao que realmente aconteceu ou está acontecendo. Os nazistas praticavam barbaridades em seus campos de concentração e, ao mesmo tempo, faziam filmes de propaganda que os mostravam como algo próximo a hotéis de veraneio populares.
Os mais jovens não devem recordar os filmetes de propaganda na tv e nos cinemas do Brasil da época da ditadura militar. Nestes, vivia-se em um mundo sem qualquer problema, apesar da tortura e de outros atos criminosos do poder. O cartunista Henfil ironizava-os, dizendo nos seus desenhos magistrais, que nestas peças de propaganda as vacas usavam óculos de sol para verem a caatinga verdejante em plena estiagem. Nas aparições públicas das autoridades da época, o ufanismo e a idéia da ilha de prosperidade em um mundo turbulento chegava às casas dos teleaudientes, que tinham a função de concordarem ou deixarem o país.
A lista de intrigas e maledicências praticadas em várias épocas é interminável. O importante é compreender o fenômeno e disseminar o antídoto, tentando controlar o veneno. Seria bom que a utopia do verdadeiro, do belo e do bem, proposta por Jean-Pierre Changeux fosse possível e alcançável a todos. Sabe-se que os seres humanos, sem distinção, podem amar a verdade, cultivar a beleza e a bondade. Os homens e as mulheres são capazes de usar a razão e a emoção no sentido do desenvolvimento e proteção da espécie. Lamentavelmente, problemas relativos à ordem social e política impedem que estas potencialidades sejam alcançadas em plenitude.
No esquema de poder simbólico de nosso tempo, as personas midiáticas têm um papel especial. Elas são todos os que depois de expostos nas grandes mídias, transformam-se em referências, em uma espécie de semideuses(as) que iluminam o caminho dos que se transformaram em consumidores acríticos do poder midiático. Não raro, sandices imensas ditas por estas figuras são fartamente usadas pelas grandes mídias, que se aproveitam da pseudo-autoridade moral dos mesmos. Trata-se da intriga que resvala destas personas para o grande público.
As mídias falam, nestes casos, pela boca de intrigantes simpáticos ao grande público. Para além de um star system, têm-se no mundo de hoje a construção de um novo Olimpo, desenvolvido na comunhão entre o público e os profundos interesses mercantis em jogo. Inúmeras funções e profissões geram seus heróis midiáticos. O que eles falam afasta-se velozmente do que realmente eles são. Foram transformados em mercadorias e perderam qualquer pretensão a serem humanos de fato. Por suas bocas passam interesses muito maiores do que eles mesmos. Obviamente, que há ‘famosos’ que se recusam e que, ao contrário, postam-se em posições contra-hegemônicas. Alguns, simplesmente, se calam e não se deixam usar, o que já é muito.
A intriga e outros irracionalismos substituem a possibilidade de se pensar. No contexto atual, transformou-se a ciência em cargos, postos e egos controladores subordinados a interesses empresariais e pessoais. O belo transmutou-se em mercadoria e perdeu o seu antigo sentido libertador. A beleza continuou existindo naquilo que é produzido pela humanidade, mas, freqüentemente, é seqüestrada pelos interesses econômicos. Estes tentam de todo modo impedir que ela floresça e esteja disponível a todos através, por exemplo, das mil e uma possibilidades da obra de arte. A empatia entre as pessoas, isto é, a capacidade de sentir o que o outro sente, de se colocar na pele de quem está sendo humilhado e ofendido continuou viva. Todavia, a onda individualista-consumista do presente impede que, majoritariamente, exista qualquer compaixão.
Raciocinando-se de modo inverso, poder-se-ia listar inúmeros exemplos brasileiros e estrangeiros onde o verdadeiro, o belo e o bem foram e são cultivados. Existem os que se recusam. Não aceitam a moda. Não se dobram frente à onda social conservadora. Mantêm a compaixão e o sentimento de pertencimento ao mesmo povo. Estes são a chama acesa dos desígnios da humanidade. Podem ser circunstancialmente derrotados. No entanto, o futuro lhes pertence.
Luís Carlos Lopes é professor e autor do livro "Tv, poder e substância: a espiral da intriga", dentre outros.
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