O mar era visível da janela do sótão sobretudo nas noites de lua generosa. Entretinha-me a contar as ondas na rebentação como quem conta carneiros em lutas contra a insónia. Os adultos, lá em baixo, faziam-se ouvir até tarde, entre discussões exaltadas próprias dos tempos conturbados da revolução fresca e gargalhadas da sua (então) não menos fresca juventude. Os dias eram passados naquilo que me parecia um isolamento total. Não unicamente meu, mas daquele familiar grupo perante o resto do mundo. À casa e ao areal deserto não chegava vivalma nem mesmo durante o dia. Sendo a única criança, sentia-me o explorador solitário de tão virgem território. A janela do sótão era a ponte do meu barco imaginário, inspiração directa das aventuras de Salgari que nunca mais deixei. Daquele ponto controlava tudo, ou dessa forma assim o via, e por diversas vezes preferi-o à imensidão do areal. Numa noite, já relegado pela hora tardia para o meu quarto no sótão, assisti da janela aos gritos que alguns do grupo lançavam a correr em direcção à água: o mergulho da meia-noite à luz da lua. Foi nesse momento que invejei pela primeira vez a idade adulta, nunca imaginando que chegaria o dia, já adulto e também a mergulhar num mar escuro numa noite de lua cheia, em que daria tudo para voltar atrás àquele preciso momento. A infância é um bem valioso e o único verdadeiramente irrecuperável. Como a vida me viria a ensinar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário