O Cego Aderaldo
(Rachel de Queiroz)
Às três horas da tarde, no pátio da fazenda, o sol é tão forte que encandeia; por sôbre o mato zarolho sobe para o céu um brilho trêmulo, feito da luz devolvida que bate no chão e volta para onde veio, como se a terra fôsse um espelho.
O jipe freou defronte à cancela, espantando uns pintos e a cachorra Baleia com o seu filho Trairi. E do banco da frente do carrinho se levantou um velho alto, de peito largo, chapéu desabado sôbre os óculos escuros. Segurando-o pela mão, um môço moreno, de bigodinho, foi-lhe dirigindo os passos, como quem traz um menino.
Saltaram tôdos das rêdes onde cochilavam ao mormaço e, com emoção e alvoroço, correram a receber aquêle que chegava. Pois o homem que atravessava o terreiro, sorrindo e saudando com sua grande voz de peito, era uma espécie de príncipe, talvez o último sobrevivente dos grandes cantadores - o cego Aderaldo.
Pelas casas dos moradores a notícia da visita se espalhou com incrível rapidez, - parecia até, Deus me perdoe, que pousara em cima do meu alpendre uma estrêla de Natal. Os homens largavam a enxada nos roçados, as mulheres deixavam o milho no pilão, esquecendo o pão e a hora da janta. E foram-se chegando de mansinho, homens e velhas, môças e meninos, e quando se deu fé, o terreiro e o alpendre estavam cheios de gente, e Aderaldo, sentado na cadeira de lona, dava a sua grande risada e contava causos e desfiava motes e depois pegava no grande violão e cantava e rememorava desafios, e fazia, como é de praxe, a louvação dos presentes. Foi aí que êle comprou para sempre o coração da dona da casa, porque enxergando-a apenas com os espirituais olhos de cego, disse, num remate de sextilha, que ela era “maneira como uma abelha...”
* * *
O povo da cidade grande não pode fazer idéia do que é o renome e a grandeza de um cantador. Êle é a voz cantadeira de tôda uma gente que não tem outra forma de expressão própria, que não lê nem escreve e, na sua necessidade de poesia e comunicação, fala e se entende pela bôca do cantador. Êle é o lírico, o épico, o noticioso, o cômico. Não são o jornal nem o rádio que informam o povo da morte de Lampião, da guerra na Europa, do suicídio de Getúlio, da subida ao céu do Padre Cícero. Ou antes, o rádio e o jornal informam, mas as gentes só dão crédito e importância depois que o cantador confirma. Ano passado os poetas populares já estavam explicando nas feiras as proezas do sputinik, e agora já estarão pondo em versos o bombardeio da Lua, para o povo acreditar.
O povo lhe dá crédito, como lhe dá amor, porque o cantador é um dêles, é a sua testemunha, ao mesmo tempo que o seu poeta - a sua consciência lírica, a sua voz de protesto ou de queixa. As mulheres choram quando o escutam, os homens ficam pensativos. E só se entende que o cantador viva pobre e morra pobre porque a sua gente só tem para repartir com êle a mesma pobreza, também. Sendo que o pouco que podem dar lhe permite viver vestido e calçado, - e para êles isso já é abastança.
Aderaldo canta de si e dos outros, conta a infância, a mocidade, a cegueira. Perdeu a luz dos olhos aos dezoito anos de idade, a trabalhar numa máquina que de repente lhe lançou no rosto uma lufada de vapor quente. Depois de cego, recusando-se a pedir esmola, como outros cegos fazem, lembrou-se de que carregava um poeta dentro do peito, arranjou uma viola e se fêz cantador. E cantando continua até agora, desde aquêles fatais dezoito anos até os oitenta e um de hoje em dia. Vive ambulante, igual a Homero, também como êle cego, poeta e cantor. Não tem mulher, - diz que mulher e cego não são boa combinação. Já criou mais de vinte filhos alheios, transformando as velhas relações do cego com o seu guia numa paternidade adotiva que lhe vai preenchendo os vazios do coração. Agora os guias já são “netos”, filhos dos guias primeiros. Faz algum tempo um político lhe deu uma maquininha de cinema, que o cantador levava pelos povoados do interior, completando a exibição dos filmes com explicações e cantigas. Viajava com uns burros, - mas com o tempo os burros foram morrendo, e alguns amigos jornalistas se lembraram de iniciar uma subscrição para lhe comprarem um jipe. Aí, porém aconteceu uma tragédia: a pequena casa onde o Aderaldo morava em Quixadá, “coberta de Jitirana, cheia de flor em botão”, pegou fogo, foi-se embora. E o incêndio comeu também o projetor de cinema, os filmes, tudo. Desolado, sem teto, o poeta desisitiu da subscrição, que já não tinha sentido. Os pouco contos de reis obtidos, deixou-os no banco onde estavam - “ficam para o meu entêrro...”. Um deputado, seu admirador, doído daquela má sorte, obteve para o cantador uma casa da Fundação da Casa Popular, em Fortaleza. Mas aí apareceu um “algoz” - e denunciou o cego como proprietário em Quixadá “de uma casa e de um cinema” - aquilo que o fogo levara...
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(Rachel de Queiroz)
Às três horas da tarde, no pátio da fazenda, o sol é tão forte que encandeia; por sôbre o mato zarolho sobe para o céu um brilho trêmulo, feito da luz devolvida que bate no chão e volta para onde veio, como se a terra fôsse um espelho.
O jipe freou defronte à cancela, espantando uns pintos e a cachorra Baleia com o seu filho Trairi. E do banco da frente do carrinho se levantou um velho alto, de peito largo, chapéu desabado sôbre os óculos escuros. Segurando-o pela mão, um môço moreno, de bigodinho, foi-lhe dirigindo os passos, como quem traz um menino.
Saltaram tôdos das rêdes onde cochilavam ao mormaço e, com emoção e alvoroço, correram a receber aquêle que chegava. Pois o homem que atravessava o terreiro, sorrindo e saudando com sua grande voz de peito, era uma espécie de príncipe, talvez o último sobrevivente dos grandes cantadores - o cego Aderaldo.
Pelas casas dos moradores a notícia da visita se espalhou com incrível rapidez, - parecia até, Deus me perdoe, que pousara em cima do meu alpendre uma estrêla de Natal. Os homens largavam a enxada nos roçados, as mulheres deixavam o milho no pilão, esquecendo o pão e a hora da janta. E foram-se chegando de mansinho, homens e velhas, môças e meninos, e quando se deu fé, o terreiro e o alpendre estavam cheios de gente, e Aderaldo, sentado na cadeira de lona, dava a sua grande risada e contava causos e desfiava motes e depois pegava no grande violão e cantava e rememorava desafios, e fazia, como é de praxe, a louvação dos presentes. Foi aí que êle comprou para sempre o coração da dona da casa, porque enxergando-a apenas com os espirituais olhos de cego, disse, num remate de sextilha, que ela era “maneira como uma abelha...”
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O povo da cidade grande não pode fazer idéia do que é o renome e a grandeza de um cantador. Êle é a voz cantadeira de tôda uma gente que não tem outra forma de expressão própria, que não lê nem escreve e, na sua necessidade de poesia e comunicação, fala e se entende pela bôca do cantador. Êle é o lírico, o épico, o noticioso, o cômico. Não são o jornal nem o rádio que informam o povo da morte de Lampião, da guerra na Europa, do suicídio de Getúlio, da subida ao céu do Padre Cícero. Ou antes, o rádio e o jornal informam, mas as gentes só dão crédito e importância depois que o cantador confirma. Ano passado os poetas populares já estavam explicando nas feiras as proezas do sputinik, e agora já estarão pondo em versos o bombardeio da Lua, para o povo acreditar.
O povo lhe dá crédito, como lhe dá amor, porque o cantador é um dêles, é a sua testemunha, ao mesmo tempo que o seu poeta - a sua consciência lírica, a sua voz de protesto ou de queixa. As mulheres choram quando o escutam, os homens ficam pensativos. E só se entende que o cantador viva pobre e morra pobre porque a sua gente só tem para repartir com êle a mesma pobreza, também. Sendo que o pouco que podem dar lhe permite viver vestido e calçado, - e para êles isso já é abastança.
Aderaldo canta de si e dos outros, conta a infância, a mocidade, a cegueira. Perdeu a luz dos olhos aos dezoito anos de idade, a trabalhar numa máquina que de repente lhe lançou no rosto uma lufada de vapor quente. Depois de cego, recusando-se a pedir esmola, como outros cegos fazem, lembrou-se de que carregava um poeta dentro do peito, arranjou uma viola e se fêz cantador. E cantando continua até agora, desde aquêles fatais dezoito anos até os oitenta e um de hoje em dia. Vive ambulante, igual a Homero, também como êle cego, poeta e cantor. Não tem mulher, - diz que mulher e cego não são boa combinação. Já criou mais de vinte filhos alheios, transformando as velhas relações do cego com o seu guia numa paternidade adotiva que lhe vai preenchendo os vazios do coração. Agora os guias já são “netos”, filhos dos guias primeiros. Faz algum tempo um político lhe deu uma maquininha de cinema, que o cantador levava pelos povoados do interior, completando a exibição dos filmes com explicações e cantigas. Viajava com uns burros, - mas com o tempo os burros foram morrendo, e alguns amigos jornalistas se lembraram de iniciar uma subscrição para lhe comprarem um jipe. Aí, porém aconteceu uma tragédia: a pequena casa onde o Aderaldo morava em Quixadá, “coberta de Jitirana, cheia de flor em botão”, pegou fogo, foi-se embora. E o incêndio comeu também o projetor de cinema, os filmes, tudo. Desolado, sem teto, o poeta desisitiu da subscrição, que já não tinha sentido. Os pouco contos de reis obtidos, deixou-os no banco onde estavam - “ficam para o meu entêrro...”. Um deputado, seu admirador, doído daquela má sorte, obteve para o cantador uma casa da Fundação da Casa Popular, em Fortaleza. Mas aí apareceu um “algoz” - e denunciou o cego como proprietário em Quixadá “de uma casa e de um cinema” - aquilo que o fogo levara...
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Tudo isso êle contou e cantou, mais rido do que chorado, porque tem a tristeza alegre. Quando partiu - o jipe fôra emprestado por um amigo, precisava chegar ao Quixadá antes da noite - nos deixou comovidos e tontos, como se a gente houvesse podido entrever, na sua profundidade natural, o escondido e singelo mistério do mundo. E se o corpo, o triste corpo de carne, nos continuava pesado e pregado ao chão, o coração aligeirado, contente, cantante, estava, êle sim, leve e inocente - “maneiro como uma abelha”...
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