sábado, 29 de agosto de 2009

"Uma parte de mim é todo mundo"

Filha de retirantes, Júlia nasceu em Caririaçu, no dia 06.01.1927. O pai, Tiburtino Pereira dos Santos, da serra de águas belas (PE) casou com sua mãe, Justina Maria da Conceição, morena clara, baixinha, alagoana de Palmeira dos Indios. Ela não sabe a data do casamento mas sua mãe contava que foi no tempo de uma fome muito grande.
Antes de migrar para o Ceará, a família tinha um pequeno sítio de café. Muitos morreram acometidos da gripe popularmente conhecida como ‘bailarina’. Era a gripe espanhola que chegou ao Brasil pelo Porto do Recife, em setembro de 1918 trazida pelos marinheiros que prestavam serviço militar em Dakar, no Senegal.


Padre Cícero e Floro Bartolomeu
entre as lideranças políticasde Juazeiro do Norte


Na década entre 1910 e 1920, Juazeiro do Norte passa por período de grande efervescência política e econõmica. Na década anterior, apesar do seu considerável desenvolvimento, a vila de Tabuleiro Grande como se chamava anteriormente, pertencia ao município do Crato.
Floro Bartolomeu, médico baiano, que chegou ao Ceará noano de 1908 em busca das minas de cobre de Coaxá, no município de Aurora, termina fixando-se Juazeiro e e aliado ao Padre Cícero impulsiona o desenvolvimento da região.
Em 1911, passou a ser Vila do Juazeiro e Padre Cícero foi nomeado seu primeiro prefeito. Em 1914, a vila foi elevada á categoria de cidade. O messianismo religioso e o dinamismo que o padre implanta na cidade estimulando a cultura e as artes populares, impulsiona a economia local e atrai mulktidões de fammintos vindos das mais variadas regiões dp nordeste


Juazeiro do Norte nos anos 10 do século XX

Parte da família migrou para Juazeiro do Norte onde morreram vários deles, alguns de fome. Para sobreviver, a mãe pedia esmola, preparava um caldo e dava uma xícara a cada filho. O seu pai morre quando Júlia ainda estava na barriga da mãe. Dos 17 filhos que tiveram, sobreviveram apenas Júlia e o irmão Deoclécio. É do irmão velho, a sua lembrança mais doída. Chamava-se Poliano. Morreu aos 8 anos. A criança queixava-se constantemente de fome e dizia para sua mãe que ia morrer porque não tinha feijão pra comer. Júlia não o conheceu mas sua mãe se martirizava ao contar-lhe este pedaço de vida quase todos os dias. De tanto ouvir, ela assimila o sentimento de culpa. O medo da fome e a herança da culpa involuntária marcaram sua infância e lhe perseguiram durante toda a vida.
A nossa conversa é interrompida por um silêncio pesado. Ela mergulha nas suas lembranças e se emociona.
- Eu não gosto de comer só. Mesmo pouco, preciso repartir com alguém, diz Júlia.
Elza entra rapidamente na sala, recolhe as xícaras e pergunta para que aquele copo com água em cima da mesa. Júlia explica que a chuva da noite anterior veio com muito vento arrastando a poeira. Ela preparou uma solução de água e sal e jogou no terreiro para espantar a ventania. Segundo ela, um método infalível que usou a vida inteira nas noites chuvosas quando as mulheres ficavam apavoradas com medo de tempestades.

Serra de São Pedro


Com a morte do pai, a mãe e o irmão migram para a área rural localizada na serra de São Pedro . Foram viver perto da irmã de uma irmã de seu pai. No período de migração da família, Manuel Cilivesti e Zefinha Cilivesti haviam-se instalado no pequeno povoado e conseguiram algum recurso. Tinham uma pequena propriedade na localidade de Queimadas onde eram proprietários de uma casa de farinha. Lá, Júlia nasceu e eles foram seus padrinhos de batismo.
Justina foi trabalhar no sítio Vitorina, propriedade de Manoel Vitorino, onde moravam numa pequena casa de tijolo. Dormiam em rede ou sobre uma cama de vara com um colchão de palha de banana. A mãe não os deixava dormir no chão.
O dia de serviço, no campo, era aproximadamente cinqüenta tostões. Recebia por semana e dava para comprar um pouco de arroz, açúcar, café cru e carne. Abastecia-se na venda de Carlos Morais.

Casa de farinha

Na região haviam muitas casas de farinha e durante as farinhadas eram dois meses de festa. No período, sua mãe trabalhava como serradeira de mandioca. No inverno, plantava milho e botava vazante nas terras do patrão. Para ajudar no sustento, era parteira na redondeza.

O parto era sempre um segredo entre comadres. Quando difícil, vestia-se a parturiente com a camisa do marido pelo avesso para facilitar o trabalho de parto. Nos três primeiros dias de resguardo, a mulher só podia sentar-se de lado. Com quatro dias, podia sentar-se no chão sobre uma esteira de palha de bananeira. Tinha que manter a cabeça amarrada com um pano para cobrir os ouvidos. As crianças só tomavam conhecimento oito dias depois do parto quando a mulher já podia sentar-se normalmente. Se havia extrema necessidade, podia descer algum batente desde que contasse com ajuda de alguém. Para Júlia, esses cuidados garantiam a saúde das mulheres daquela época.
Viviam entre Juazeiro do Norte e o pequeno povoado de São Pedro do Cariri, posteriormente Caririaçu, trabalhando alternadamente na farinhada e no corte do arroz.
O corte de arroz era uma atividade basicamente feminina, exercida principalmente por mulheres viúvas. Cabia aos homens cortar e carregar cana. O pagamento era recebido a cada dia. O patrão chamava-se José Bezerra, pai dos coronéis Adauto e Humberto Bezerra, figuras de destaque na política cearense no período da ditadura militar iniciada com o Golpe de 1964.

A mãe levava os dois filhos para o trabalho e os deixava brincando embaixo de um pé de juá. Ali, as crianças ficavam durante a jornada de doze horas, das seis da manhã às seis da noite. De manhã, tomavam café preto com farinha seca. Colocava a farinha dentro do café e tomava. O almoço variava entre feijão, xerém de milho, baião de dois, mungunzá que a mãe pilava num pilão de pedra. Também se alimentavam da farinha de semente de jerimum, seca e torrada, que a mãe pilava. Haviam os tomates que nasciam em penca atrás de casa e eram comidos com açúcar. A mãe comprava um jogo de corredor, salgava a carne e guardava. Com o osso fazia um pirão. Julia foi criada com leite de cabra.
As vizinhas costuravam-lhe as poucas roupas. Júlia lembra seus vestidos de xadrez feitas de tecido barato também utilizado para toalha de mesa. A mãe usava saia comprida, com dois babados, sempre nos tons azul e preto porque era viúva.
Justina era asmática e o corte de arroz, realizado com água até a cintura, agravava cada vez mais a cada temporada de trabalho. Um dia foi se receitar com Padre Cícero. Levou junto os dois filhos para serem abençoados. O padre colocou a mão sobre a cabeça das crianças e deu-lhes sua benção. Receitou-lhe um remédio que a fez melhorar um pouco mas logo depois ficou outra vez doente. O irmão também sofria de asma.
Um dia, a mãe voltou para casa com muito cansaço e febre alta. Foi piorando e por volta de três horas da tarde faleceu. Júlia estava junto e correu para chamar a vizinha. O enterro foi na rede. As duas crianças voltam do cemitério para casa com uma mocinha que passa a dormir com eles. Era 1934. Júlia não lembra o mês nem sabe a idade que a mãe tinha.
Já não há mais condições de continuar nossa conversa. Júlia desaba num choro comovente. Fico emocionada e constrangida. Demoro mais um pouco e vou correndo para minha casa, não quero perder minhas informações. Tenho que registrar tudo no meu caderno de anotações. Nossa primeira conversa durou cerca de três horas.

ML

No próximo domingo continuaremos com a segunda parte.

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